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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

JOVITA

Jovita Alves Feitosa, cearense de nascimento, vivia em Jaicós (PI). Tinha 17 anos quando se apresentou em Teresina, como voluntária para a guerra do Paraguai. Seguiu da capital do Piauí para o Rio em 1865. Multidão aclamou-se em São Luís. À noite, homenagem no teatro e aí coberta de flores. No Recife, a recepção esteve mais intensa. Na Bahia, a mesma cousa. Hospedou-se no palácio da presidência da província. No Rio, recebida com muitas festas. Mas o governo não permitiu a sua ida para o teatro da guerra, como militar. Voltou ao Piauí. Mal recebida pela família em Jaicós, regressou ao Rio. Iniciou relações com o engenheiro Guilherme Noot, que teve de retornar à Inglaterra, deixando-lhe bilhete de despedida. Jovita procurou a residência do amante e lá soube que era verdadeira a viagem para a Inglaterra. Foi ter ao quarto em que ele residiu. Horas depois, a empregada da casa encontrou-a na cama, deitada, com a mão sobre o coração, no qual havia cravado um punhal até o cabo.

A peça teatral "Jovita ou a heroína de 1865" foi concebida em três atos: o 1º, de cenário em Jaicós-PI, publicou-se com o título original de "Pelo amor e pela pátria"; o 2º, e o 3º tiveram os títulos de "Aos braços de Henrique ou aos braços da morte" (cenário em Teresina) e "Saiba morrer a que viver não soube" (cenário do Rio de Janeiro), respectivamente.

O drama histórico de Jônatas Batista encenou-se no Teatro 4 de Setembro, da capital piauiense, a 19.04.1914, nos seus três atos. Papel principal: artista Nena Pimentel, que representou Jovita. O autor fez as vezes de Anacleto Ferreira.

Infelizmente se perderam os dois atos complementares da peça, baseados na vida dessa cearense dos Inhamuns, que, aos 16 anos, passou a viver na vila de Jaicós, com um tio de nome Rogério. Pretendia estudar música. Arrebentando a guerra do Paraguai, a jovem vestiu roupa de homem, cortou os cabelos, cobriu a cabeça de chapéu de couro, e viajou sozinha para a Teresina. Na capital, procurou as autoridades. Queria alistar-se como voluntária da pátria, e seguiu com o segundo corpo de voluntários com destino ao Rio de Janeiro.

*   *   *

Ilustrados historiadores se preocuparam com a história de Jovita Alves Feitosa, da forma que fizeram o pernambucano Pereira da Costa e os piauienses Fernando Lopes e Silva Sobrinho, padre Joaquim Chaves e Humberto Soares Guimarães, para citar alguns.

Delci Maria Tito, faz algum tempo, vem pesquisando dados sobre mulheres que se tornaram notáveis em atividades políticas, educacionais, religiosas, assistenciais, literárias, ou que participaram de episódios históricos do Piauí. Trata-se de trabalho original, que ela pretende realizar com os dados biográficos e a obra fundamental prestada à sociedade a que cada uma dedicou esforços constantes, iniciando-se com Jovita Alves Feitosa, originária dos Feitosas do Ceará, a valente taba dos Feitosas, de que se têm ocupado escritores como Gustavo Barroso.

Teresina viveu noites animadas, mais de uma vez, no Teatro 4 de Setembro lotado, nas apresentações da peça histórica sobre o drama dessa infeliz sertaneja, de autoria de Jônatas Batista, de grande e merecida popularidade na época em que foi o principal animador, ao lado de Pedro Silva da vida teatral teresinense.


A. Tito Filho, 29/12/1990, Jornal O Dia

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

VIOLÊNCIA

Jornais, rádios, televisões vivem hoje do noticiário da violência, e cada época teve o seu tipo de violência, na Roma dos Césares como no Itararé de Teresina. Adolescente, morei em Teresina e na mocidade passei uns oito anos fora daqui, em Fortaleza e Rio. Andava pelas ruas sozinho, de madrugada, e jamais encontrei quem me assaltasse.

Ainda em 1970, passei a residir no distante bairro de São Cristovão da capital piauiense. Haroldo Borges me havia conseguido um carro velho, marca Esplanada, com uma das vendedoras de veículos. Às vezes o automóvel me deixava na rua, noite grande, e eu retornava a casa com os pés da locomoção própria. Vendi a porcaria por umas patacas. Pouquíssimos ônibus. Eu fazia um programa de rádio na Difusora das 22 às 23 horas e caminhava o longo percurso de retorno ao lar. Jamais encontrei quem me filasse um cigarro.

Não desconhecia a violência política do submundo ditatorial. Li-a em livros que se tornaram célebres. Os porões da ditadura de Vargas, com o bárbaro Filinto Muller, guardam cadáveres, homens mutilados, baixezas sem conta de uma polícia treinada para impor sofrimento ao semelhante. O nosso Celso Pinheiro Filho apanhou tanto nesses subterrâneos de crimes animalescos que perdeu o uso das pernas. Assassinos perversos.

Chegaria 1964. De novo a sangueira nojenta de certas autoridades de lama. Mataram-se jornalistas e operários. Era a sanha do eunuguismo moral.

As práticas da violência, porém, se escondiam. As vítimas desapareciam simplesmente, e os carrascos infames se intitulavam salvadores da pátria amada. Mas a violência chegaria, como chegou, a ser praticada à luz do sol, à boca da noite, a qualquer momento. O reino atual da vingança contra os que se tornaram surdos aos clamores dos perseguidos, dos injustiçados, dos que a política nefasta abandona de modo desumano.

Contra quem se pratica hoje a violência? Contra os engravatados que roubam às escâncaras, contra os que, munidos de prestígio político, tomam a propriedade alheia, estupram pobres mocinhas interioranas, enganam, ludibriam, demitem, negam a cada um o que é seu. Vivem na opulência, ganham milhões diariamente, humilham, riem da miséria alheia, num soçaite fútil e ocioso. Quem está padecendo a violência? O empresariado sem alma, orgulhoso, cheio de empáfia, ignorante, que esquece os deveres sociais e a pregação cristã dos papas e cada vez mais se enternecem da dinheirama mal adquirida.

Observe-se o seqüestro. Sou contra o processo, sobretudo quando se submete o seqüestrado a vexames físicos, morais e psicológicos. Para adquirir a liberdade, quanto paga esse tipo de refém pelo dinheiro pedido? Milhões em dólares. Donde vem essa quantia? Das burras abarrotadas de pelegas estrangeiras fornecidas pelo Banco Central do Brasil.

E jornais, rádios, televisões, quando se liberta o indivíduo, sustentam a propaganda do HERÓI pelo menos durante uma semana.

Faz poucos dias, seqüestraram um garotinho. Os seqüestradores pediram até pouco, uns 500 mil doentes. A mãe do menino fez apelo, não tinha dinheiro, implorou a devolução do filho. Nenhum empresário de milhões se mexeu para ajudá-la.

Só se vê violência no seqüestro dos biliardários. Sim. E a violência da fome de milhões, dos milhões sem teto, dos milhões de analfabetos, dos milhões de doentes sem socorro, dos milhões de menores abandonados, dos milhões de esfarrapados, rotos e maltrapilhos?


A. Tito Filho, 25/07/1990, Jornal O Dia

TERESINA

Vejo-a sem a minha infância, sem os dias queridos que não voltam mais, as saudades provocando nó na garganta, um choro que não consola. Sem o CaiNágua, o cabaré das garotas de segunda classe, perto do Parnaíba, que os meus olhos de adolescente desejavam, mas os cânones da época proibiam. Sem os circos, na praça Deodoro, grandões, palhaços engraçados, ameaçando as velhotas atiradas com o troncudo pedaço de macaxeira. Na frente do imenso toldo, dezenas de bancas, na venda de frutas descascadas, refresco, sorvete de gelo rapado e mel de fruta, gostoso como o diabo, frito de carne de porco, beiju salpicado de farelo de coco. No calor das tardes, máquinas equilibradas na rodilha da cabeça, com a manivela de rodar e fabricar o melhor sorvete do mundo, o caboclo, alpargata chiadeira, passeava as ruas, a vender a guloseima.

Vejo-a sem o pega-pinto gelado, que a gente ia comprar, oito da noite, na jarra, uns oito copos, para a família à espera na roda da calçada. Sem o Doutor, dono de frege, estabelecimento modesto, mesinhas sem toalhas, pimenta malagueta danada, cachorros gafentos e famintos à espera do osso que o freguês alisara, depois de engolir tripa e bucho - a panelada da cidade, a cinqüenta metros da praça Rio Branco. Sem o Bar Carvalho, de elite, vendia cafezinho, chocolate com ovo e sem ele, sobretudo o filé de grelha, enfeitado de ervilha, azeitona, alface e farofa. Manjar dos deuses, do cozinheiro espanhol Gumercindo, um mágico em comedorias.

Vejo-a sem o alarido das pipiras tentadoras - as mocinhas pobres empregadas da Companhia de Fiação e Tecidos Piauiense, ruído de máquinas o dia todo. As garotas, vestidinhas de chita, merendavam banana, daí o apelido que a crônica registra.

Vejo-a sem a presença de Celso Pinheiro, poeta e tuberculoso, fatiota branca engomada e reluzente, chapéu de palhinha, gravata borboleta... irreverente...; sem Higino Cunha, mestre verdadeiro, a caminhar pelas vias públicas, aqui e ali o trago de bebida destilada...; sem Pedro Brito, calças velhas de mescla, cornimboque de rapé nos bolsos largos, suado, a ironizar homens importantes...

Vejo-a sem as funcionárias domésticas, mocinhas morenas, que o povo denominava curicas, porque recebiam o prato de comida no peitoril da residência... Caboclinhas de pé de esquina, na cidade pouco iluminada... Sempre perdiam o cabaço para o filho-família, o moço dengado.

Vejo-a sem o cabaré da Raimundinha, alegre, as meninas de vestido abaixo do joelho, cada qual com a sua alcova de deitar com quantos machos obtivessem na noite comprida... Tiravam a roupa de luz apagada... Que Tempo!

Vejo-a sem as pracinhas de donzelas faceiras, que rodavam num sentido, os gajos em sentido contrário no fascinante namoro de olhos... No cinema, o casal se dava o gosto da bolinação... Namoro de mão nos peitinhos arrebitados...

Vejo-a sem o símbolo que foi a Maria Préa, mulata boa de cama, com estudante de bolso vazio ou desembargador de prestígio firmado.

Hoje, vejo-a urbanizada de pombais, ou casinholas habitadas do êxodo interiorano; povoada de veados de luxo ou simples viciados na inversão dos locais de prazer; vejo-a na falsa convivência dos coquetéis, das uiscadas e das festas de caridade; vejo-a no comércio com o nascimento de Jesus e com as mães, merecedoras pelo menos de um pouco de respeito; vejo-a despudorada, meninas ricas sem roupa, por deboche, meninas pobres do mesmo jeito por miséria. Vejo-a uma imensa putaria de homens e mulheres, com as devidas exceções; Vejo-a violenta, estúpida, deseducada - tipos debaixo-da-ponte, alguns felizardos da vida ociosa à custa de golpes e falcatruas e outros tantos no repasto oficial da República sem freios.

Vejo-a sem futuro, sem esperança, mas ainda creio no resto do otimismo que me sustenta os olhos sofridos da saudade dos tempos que não voltam mais...


A. Tito Filho, 19/08/1990, Jornal O Dia

domingo, 25 de dezembro de 2011

DEZESSEIS BACHARÉIS

Foi bom. Passaram-se quarenta anos. Numa sala pequena, padrinhos e convidados espremidos, colaram grau, a 16 de dezembro de 1950, na antiga Faculdade de Direito do Piauí, dezesseis novos bacharéis, cada qual mais feliz do diploma conquistado. Presidiu a bonita solenidade o mestre de invulgar conceito Cromwell Barbosa de Carvalho, muito querido da comunidade teresinense. Eis a relação dos jovens da época, vitoriosos com a colação de grau e ricos de merecidos triunfos no correr dos anos: AFRÂNIO MESSIAS ALVES NUNES, professor, secretário da Educação, deputado estadual várias legislaturas, desportista, conselheiro do Tribunal de Contas, secretário do Trabalho, em cujo exercício se encontra. Prestou o juramento em latim em nome dos colegas de formatura. ALCEBÍADES VIEIRA CHAVES, juiz em comarcas do interior, atualmente desembargador do Tribunal de Justiça do Maranhão, que já presidiu. ESDRAS PINHEIRO CORREIA, promotor público, procurador da Justiça, membro do Colégio dos Procuradores de Justiça e do Conselho Superior do Ministério Público, corregedor geral do Ministério Público, agora no exercício de procurador-geral da Justiça. JOSÉ DE ARIMATHÉA TITO FILHO, professor e jornalista, escritor, diretor do Colégio Estadual do Piauí, secretário da Educação e da Cultura, desempenha as funções de procurador do instituto de previdência do Estado. Desde 1971 preside os destinos da Academia Piauiense de Letras. Orador da turma. JOSÉ BARBOSA, deputado estadual, prefeito de Altos, onde reside, em seguida promotor público. JOSÉ GUILHERME DO REGO MONTEIRO, advogado e procurador do Estado. MANOEL PAULO NUNES, alto funcionário do Ministério da Educação, secretário da Cultura no Piauí, escritor e membro da Academia Piauiense de Letras, desempenha o magistério universitário em Brasília. OMAR DOS SANTOS ROCHA, professor, advogado, criminalista, chefe do setor jurídico da Polícia Militar, funções que exerce no momento. Integrou a Força Expedicionária Brasileira na 2ª Guerra Mundial. RAIMUNDO EVERTON DE PAIVA, juiz de direito no Maranhão e desembargador do Tribunal de Justiça do referido Estado. SEBASTIÃO ALMEIDA CASTELO BRANCO, advogado e procurador de INPS em Fortaleza.

Os citados, com exceção dos indicados como residentes noutros cenários, assistem na capital piauiense.

Passo aos falecidos, saudosos companheiros: JOÃO LINO DE ASSUNÇÃO, advogado, morava na cidade maranhense de Caxias. CRISTOVÃO ALVES DE CARVALHO, faleceu como juiz de direito da comarca de Pio IX, no Piauí. JESUS DA CUNHA ARAÚJO, juiz de direito em Belo Horizonte, cidade onde se despediu da vida. MANOEL TEODORO DE SOUSA GOMES, professor e contador seccional do Ministério da Fazenda, em cujo exercício morreu. RAIMUNDO ACILINO PORTELA RICHARD, advogado, exercendo ainda, ao falecer, o cargo de advogado de ofício, correspondente a defensor público. ERNANI DE MOURA LIMA, deixou este mundo em elevadas funções no Banco Central da República.

Grandes mestres lecionaram a turma, à qual me incorporei no último ano do curso, quando regressei do Rio de Janeiro, antiga capital da República em que tive quatro anos de estudos, e regressei para assumir cargo federal. Não posso referir-me senão aos professores do 5º ano, como Clemente Fortes, o paraninfo dos concludentes, Edgar Nogueira, Ernesto Batista, João Martins de Moraes, Hélio Correia Lima. Mestres responsáveis, alunos vitoriosos.

Foi bom. Três ou quatro dias de festas dos novos bacharéis dessa época da mocidade. Ainda hoje, de vez em quando, os colegas se reúnem e comemoram o acontecimento. Está faltando a reunião agradável e alegre dos 40 anos.


A. Tito Filho, 16/12/1990, Jornal O Dia

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

NOS SUBTERRÂNEOS DO KGB

Na hora da glasnot, ou seja, da transparência,d e deixar que se abram as janelas para a União Soviética e a sua república central, a Rússia, é bom que os testemunhos mais ricos e claros sejam colocados ao alcance do leitor brasileiro, a bem de um esclarecimento que nos aproxime do sofrido povo russo.

Curiosamente através de revistas e jornais, temos obtido retratos bem esclarecedores sobre a vida na União Soviética, dos protestos em várias das suas repúblicas, da intervenção das forças armadas para conter esses protestos, sabemos da discussão política dentro e fora do Partido Comunista, até sabemos que se admite pela primeira vez a existência do pluripartidarismo, - mas nada se escreve sobre o KGB! E nós sabemos o que aconteceu com o DOPS, com o PIDE, até temos condições com o DOPS, com a PIDE, e até temos condições de avaliar o que se passa na CIA e no FBI, mas do KGB, nada.

Por isso, a oportunidade do lançamento deste livro, "Minha vida no KGB", que é a história de Stanislav Levchenko, um sentenciado à morte pelos famosos Komitet Gosudarstvennoy Besopasnosty.

É uma história de espiões onde a ficção é feita de fatos verdadeiros, onde os sofrimentos, as "caçadas", as matanças, os dramas e as fugas fizeram parte da vida excitante, trágica, e, por vezes, bizarra, de um espião russo muito bem sucedido.

Por que é que ele foi sentenciado à morte?

Aí você vai saber como é que o KGB controla a vida das pessoas e, em especial, a vida de Stan Levchenko. Como é que a chantagem faz com que as pessoas se rendam ao desempenho de papéis escusos e atentatórios aos seus próprios interesses, aos dos seus amigos que têm de trair para continuar a viver.

Levchenko acabou fugindo para o outro lado onde - para ele - existia um mínimo de segurança, afinal, nem ele tinha culpa de ter sido criado e instruído do lado errado.

STANISLAV LEVCHENKO é um homem marcado para morrer. Ele sabe demais sobre o KGB e, portanto, é um "arquivo" que precisa ser destruído. Foi condenado à morte e, por muito que viva, será sempre perseguido. Entretanto, seus amigos lutam para que ninguém saiba onde está, o que faz e o que pretende realizar. Sua segurança é a segurança de informações vitais para o Ocidente e para o definitivo ressurgimento da democracia na Rússia.


A. Tito Filho, 27/04/1990, Jornal O Dia

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

PAIXÃO E CIÚME

Paixão e ciúme. O ciúme, nos criminosos, aumenta ou diminui a pena?

Sou professor de português e confesso que tais assuntos não pertencem a minha especialidade profissional, razão pela qual me limito a transcrever abaixo opinião de juristas e estudiosos brasileiros e estrangeiros.

Trebutien, no "Curso Elementar de Direito Criminal", apesar da condenação que reclama para os criminosos passionais, reconhece que as paixões alteram a razão e o julgamento:

"A cólera e as paixões não são uma causa de absolvição. Elas podem alterar a razão e o julgamento, mas não os aniquilam completamente. A lei dá a prova a tal respeito, reconhecendo a existência de uma escusa simples e não uma causa de absolvição. Em todos esses a lei faz baixar consideravelmente a pena, porém mantém a criminalidade".

Não devem ser confundidas a paixão e a emoção. Definiu-as bem Ottolengui:

"A emoção é um estado agudo de excitação psíquica. A paixão é um estado emocional crônico. No primeiro temos o furacão, segundo o mar com os movimentos lentos das tempestades internas". (Psicopatologia Forense - citação de Severiano nos "Criminosos Passionais e Criminosos Emocionais" - pág. 12).

Realmente, há durabilidade e até cronicidade na paixão, equivalente afetivo da idéia fixa, no dizer de Letourneau.

O ciúme é paixão:

"As paixões que nascem de um desejo em estado de calma, e nutridas posteriormente, não apagam a reflexão senão no momento em que explodem. Tais são as paixões da vingança, do ódio, da ambição, da cupidez, do amor, do ciúme, as paixões políticas" - é o que afirma Haus.

Este esclarecimento é de Garrand: "Classificam-se as paixões em duas grandes categorias, constituindo uma nos movimentos violentos dalma e outra em um estado dalma resultante de desejos não reprimidos, tais como o amor, a ambição, o ciúme, o ódio, o fanatismo, a intemperança".

Saulle chegou a advogar para os passionais estabelecimentos especiais nos quais cumprissem as penas impostas.

Ingenieros atestou que os que matam por paixões são anômalos volitivos.

Ferri reconhece nos passionais certos estados que rompem o equilíbrio psicológico e provocam impulsos irresistíveis, os quais, quando oriundos de causa moral, devem até gerar a irresponsabilidade do agente.

Carrier admite que o ciúme possa tomar uma forma verdadeiramente mórbida. Moreau fala da loucura por ciúme. Esquirol atesta que o ciúme tem ligação com certas doenças mentais.


A. Tito Filho, 22/02/1990, Jornal O Dia

TRAGÉDIA

Era um sábado, dia 13 de julho de 1957. Manhã e tarde tranqüilas nesta Chapada do Corisco. Pouco movimento de carro, pois havia poucos carros. Ainda estava distante o sistema de financiamento, para liquidar mais ainda a depauperada classe média. Bares e botecos, como de costume, com os seus costumeiros fregueses de cerveja e aperitivos. Adolescentes e moço em férias escolares. Os namorados já se preparavam para as sessões cinematográficas no  4 de Setembro e no Rex. Nada perturbava a calmíssima Teresina de vinte anos atrás. O sol já tinha morrido, quando chegou a notícia da tragédia espantosa, pavoroso choque de veículos na estrada de Altos na distância de trinta e seis quilômetros desta capital. Comentava-se que mais de vinte morreram no local e era impressionante o número de feridos. Pouco tempo depois, o Hospital Getúlio Vargas se transformava numa hospedaria de dor e de angústia, de lágrimas e de desespero. A multidão ali estava aturdida, emocionada, comovida, comungando do sofrimento das vítimas e seus familiares.

As notícias começaram a chegar. O ônibus MARIMBÁ, de propriedade de Joca Lopes (João de Deus Lopes), vinha de Parnaíba. Viagem normal. Depois de Altos, uns cinco ou seis quilômetros de Teresina, houve o choque formidável com um caminhão Ford, carregado de carvão e madeira, de propriedade de José Candido Porto - e o local se transformou em cenário dantesco. mais de duas dezenas de mortes, cerca de vinte feridos. A tragédia enlutara muitas famílias de Teresina, de cidades interioranas e ainda de outras cidades brasileiras.

A estrada de Teresina a Altos não era asfaltada, como hoje, mas de piçarra. Tempo de verão, os carros em trânsito produziam nuvens de poeira avermelhada, que não permitia visibilidade aos motoristas que viajavam no mesmo sentido. O pó cobria tudo.

Daqui para Altos seguiam dois veículos. Pequena a distância entre os dois. Natural que o chofer do carro de trás, para se ver livre da terrível poeira, procurasse ultrapassar o carro da frente. Muitas vezes o motorista do que ia na frente tudo fazia para que o colega não conseguisse cortar a proa, como se diz, justamente em situação desvantajosa, passando a vítima do pó infernal.

Essa estrada de Teresina a Altos era um tanto estreita. Os dois carros prosseguiam. O da frente desviou-se um pouco para a direita. Era natural. Em sentido contrário vinha o MARIMBÁ. E o motorista do veículo que ia para Altos deu com o carro para a direita, possibilitando, assim, a passagem tranqüila do ônibus. Mas o motorista do caminhão de madeira, que ia recebendo a importuna poeira do outro, entendeu que o colega estava abrindo terreno para a ultrapassagem. E sem visibilidade, meteu o caminhão pela esquerda, no justo momento em que o MARIMBÁ emparelhava com o primeiro. Impossível evitar a tragédia assombrosa.

*   *   *

Uma novela das mais impressionantes, de Salomão Chaib, médico piauiense residente em São Paulo, recebeu o nome de UM DRAMA DE CONSCIÊNCIA e será apresentado ao público no fim deste mês de maio pela Academia Piauiense de Letras.

*   *    *

A Academia Piauiense de Letras está preparando a edição de novo romance do notável José Expedito Rêgo, A MALHADINHA, baseado em história real de fazenda de criar, no interior de Oeiras.


A. Tito Filho, 15/05/1990, Jornal O Dia

DIAMBA

Diamba é o nome de uma planta de que os negros faziam fumo, cujas folhas têm propriedades entorpecentes. Francisco Fernandes depõe que as flôres também se usam como narcótico.

A palavra parece vir do quimbundo, o mais importante linguajar da crença quando filia diamba ao quimbundo riamba, cânhamo.

Diamba, liamba e riamba são formas que designam certa variedade de cânhamo, erva mirtécea ou Cannabis sativa, nome científico.

Renato Mendonça entende que em quiamba o cânhamo chama-se Riamba, enquanto a forma liamba é conhecida no sertão africano. Segundo nota de Mário Marroquim, em Pernambuco e Alagoas vivem na língua popular as duas formas liamba e diamba. O maranhense Viriato Correia escreveu diamba: "Depois num domingo, em tempo de colheita, quando em casa, descansando da semana trabalhada, pitava a cabeça de diamba...". Em Pernambuco, Gilberto Freyre ouviu entre viciados diamba e liamba.

Francisco Fernandes faz, no Dicionário, referência às três formas, diamba, liamba, riamba, que se registram também no "Dicionário do Folclore Brasileiro", de Cascudo, Diamba é a preferida de Macêdo Soares: "Liamba é uma erva da India, que já de muitos anos se cultiva no Brasil. Os africanos entre nós usam desta planta no cachimbo, como fumo".

Pesar de ter nome africano, a planta parece ser originária da Ásia. É a opinião de Cascudo. Os negros trouxeram-na para o Brasil, para utilizá-la talvez nos banhos e bebidas de iniciação conforme ao depoimento de Manoel Querino.

A diamba, liamba ou riamba é ainda conhecida por outros nomes, como pango e maconha, também fumo de Angola. O notável Cascudo fala em gongo, mas houve certamente engano. Gongo não vale o mesmo que maconha. A árvore de cujo fruto se extrai bebida que embriaga é gongó.

A respeito de pango anotou Macêdo Soares: plantas cujas folhas usam os negros para pitar e que produzem o mesmo efeito do anfrião.

Não vi anfrião nos léxicos modernos. Registra-o o velho Morais com esta explicação: "É planta árabe, o mesmo que ópio".

Na Amazônia existe a maricana, de que se fazem cigarrilhas das folhas, de efeito hipnótico. É o que informa A. J. Sampaio, em "A Alimentação Sertaneja e do Interior da Amazônia".

Diamba, liamba, riamba, maconha, pango, gongó, fumo de Angola, maricana - qualquer nome que se lhe dê- a erva é hoje da predileção de gatunos e vagabundos, fumada pela malandragem para criar coragem e dar leveza ao corpo. Contra o seu uso e abuso faz a Polícia guerra permanente.


A. Tito Filho, 12/12/1990, Jornal O Dia

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

BIOMBO

Biombo é tabique móvel para divisão de compartimentos numa casa ou peça de madeira ou pano, próprio para armar e desarmar.

Muito se usou o biombo em outros tempos. Atrás dele se vestiam moças recatadas, Nos dias atuais desapareceu praticamente.

Em linguagem figurada, pode empregar-se biombo no lugar de recanto, refúgio, esconderijo, proteção.

Concordam os etimologistas quanto à origem de biombo: do japonês biobu, de biô (proteção) e bu (vento). Citando dicionários espanhóis, Rodrigo de Sá Nogueira viaja o mesmo caminho: "Del japonés byó (protección) y bu (viento).

Originariamente, biobu ou biombo é proteção contra o vento. Essa acepção se encontra no velho Morais:

"Biombo. Sustém-se em pé, para cobrirem cercando, por exemplo, uma cama, porta, etc. contra o frio" (Dicionário).

Não cabe dúvida que os japonistas portugueses do século XVI escrevem uniformemente beobu; somente pelo meado do século seguinte e fora do Japão ocorre a variante biombo, o que indica que a nasalização se operou dentro do português. A lição está nas Apostilas de Gonçalves Viana.

Mas essa nasalização não se deu por analogia com bombo, segundo pensa Silveira Bueno, tenho impressão de que ela se processou com fundamento na vogal fechada ô (biôbo) antes da bilabial b, para facilitar o esforço de voz: biôbo - biombo.

Resumidamente, lembro no final estas considerações que li, há tempos, em autor, cujo nome fugiu da memória: durante a segunda metade do século XVI, estabeleceram-se no Japão colônias portuguesas que estenderam pela Europa o conhecimento das cousas e costumes japoneses.

Do Japão procede o vocábulo e se escreve com dois ideogramas, cuja pronunciação japonesa é biôbu, ou biombo. Os ideogramas mencionados, biô e bu, significam respectivamente proteção e vento, de maneira que o francês paravent e o italiano paravento traduzem exatamente a palavra japonesa.

A origem japonesa de biombo foi anunciada há alguns anos por Foker e por Gonçalves Viana.


A. Tito Filho, 29/03/1990, Jornal O Dia

SITUAÇÃO

Há países, como a Inglaterra, em que o rádio e a televisão pertencem ao poder público. Proíbe-se que a empresa privada os explore, para que se evite a força econômica a serviço de idéias dos seus proprietários e contrários aos interesses públicos, deformando-se os aspectos mais caros do civismo nacional, como, por exemplo, a linguagem. A tevê, sobretudo tornou-se processo dos mais ativos para a inquietação do home, pela propaganda do luxo supérfluo, do erotismo. A tevê é poderosa via de comunicação, justamente porque se utiliza do som e da imagem. Na Brasil inexistem programas educativos, porque eles não têm audiência nem rendem do ponto de vista comercial. O noticiário abundante está nos assassinatos bárbaros, na perversidade dos seqüestros, nos dramas dos sem-teto, na terrível matança urbana praticada pelos justiceiros, nos assaltos de rendas milionárias, no comércio da droga, no drama das greves dos famintos. Relegam-se a plano secundário as datas patrióticas da nação. Tiradentes vale um ilustre desconhecido do povo brasileiro e do protomártir corajoso apenas os policiais militares homenageiam a memória, lembrando a glória do alferes seu patrono. Euclides da Cunha ganhou as telas televisivas por causa da tragédia em que se envolveu, jamais por razão de ter dado novos rumos aos estudos sociais brasileiros. Uma estação de tevê faz pouco tempo ganhou milhões exibindo cenas de uma triste história passional, em que o grande escritor aparece como um tipo grosseiro, nervoso, quando Euclides sempre teve gestos de coragem e no trato com a família e os amigos sempre de exemplar maneiras, até quando a esposa, de sexo anormal, em amores clandestinos com um jovem de 17 anos, caso de inversão sexual, pois a mulher andava pelo dobro - criou, de modo leviano, numa época de severos costumes familiares, um Euclides sem rumo e sem norte, disposto em determinada hora a lavar a honra do lar ultrajado. Ana de Assis era feia, um tanto gorducha, mas arrancava furores de um jovem virgem em matéria feminina. A televisão enganou a ignorância nacional, colocando no lugar da adultera a magnífica Vera Fischer. Como sempre o material predileto da tevê brasileira está na exploração do erotismo, nas novelas de conteúdo passional e emocional. No mais, violência por cima de violência, na exibição de um País doente no seu organismo moral, social e espiritual.

Na verdade, o Brasil destes dias cruciais corresponde a um Brasil de problemas cada vez mais intensos. Avolumam-se as crises. Multiplicam-se os crimes contra o patrimônio e contra a pessoa. Mata-se por qualquer motivo. As classes nababescas vivem do fútil e da estroinice. Os assalariados padecem a pior de todas as afrontas: a fome endêmica. Dois meses antes de assumir o atual presidente da República, a indústria e o comércio,d e mão dadas, subiam todo dia o preço das mais variadas necessidades do homem como se se prevenissem contra o possível tabelamento de preços na administração que se inaugurava. Assim, o regime inflacionário jamais chegou a zero, como na propaganda oficial, pois os preços de 15 de março estavam aumentados como prevenção contra o regime Collor.

Que se está fazendo da cultura e da educação? Na área cultural, as entidades por ela responsáveis perderam os seus melhores servidores, demitidos por via simplesmente numérica, como se assim fosse possível efetivar qualquer tipo de reforma administrativa. Na área educacional, o ensino público e privado, faz que os verdadeiros mestres busquem atividades com que suportem a vida, no seu cortejo incontável de angústias, e que outros mestres se improvisem num verdadeiro antimagistério. E observe-se que no Brasil pouco ou quase nada se ensina, e circunstância mais aberrante: colégios e universidades nenhum gesto adotam para que o homem se eduque.

A nação precisa de paz, de encontrar caminhos para a tranqüilidade dos brasileiros doentes, de hospitais fechados, famintos, esquálidos, habitando imensas favelas. No Brasil o que menos se respeita é a vida do semelhante. Por quê? Porque dói tanto padecimento de milhões e a riqueza cartorial, a roubalheira dos dinheiros públicos, a impunidade dos colarinhos-brancos, a existência faustosa e irresponsável de poucos, dos protegidos e apadrinhados.

E quando mais se necessita de que a violência seja varrida, novas vítimas se fabricam, com a famosa reforma administrativa, que se baseia, exclusivamente no critério das demissões. Milhares de servidores desempregados. Mais vítimas cujo caminho está na adesão à violência. Se as nomeações foram desnecessárias, para a satisfação de interesses da parentela ou da politicagem, por que não se punem os autores das ilegalidades?


A. Tito Filho, 18/07/1990, Jornal O Dia

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

BANCOS

Pouquíssimos entendo de instituições bancárias. Só sei neles pedir dinheiro emprestado, com o respectivo pagamento dos juros. Neste 1990 tive um nó na garganta, o pior choro do cristão, porque  se encerraram as atividades do Banco do Piauí, fato muito conhecido da opinião piauiense. Também o governo do importantíssimo turco presidente do Banco Central, que fala um português de capadócio grego, mandou fechar outras casas de crédito, em Goiás, Rio Grande do Norte e na Paraíba.

Possuo amigo do coração como prefeito da cidade Paraibana de Santa Rita, terra de Carlos Eugênio Porto, que pertenceu à Academia Piauiense de Letras. Os santarritenses são governados por um escritor ilustre, pesquisador e historiador, e sabe administrar a sua comunidade de modo competente, corajoso e sobretudo aplaudido pela honestidade inatacável. Chama-se Marcus Odilon, que de vez em quando me visita nesta Teresina que ele estima de verdade.

Marcus, com data de 18 de outubro, mandou o oficio ao presidente da República, oferecendo sugestões que bem poderiam solucionar problemas seríssimos e de suma gravidade nos Estados que tanto vêm padecendo sob a anarquia administrativa e moral reinante no Brasil, o velho e bom quintal dos Estados Unidos.

Eis a abalizada opinião do Prefeito Marcus Odilon Ribeiro Coutinho: "Dr. Fernando Collor de Mello, MD Presidente da República:

"A economia paraibana, que não atravessa bons tempos há várias décadas, está penalizada com a intervenção do Paraiban, que bem ou mal, era o nosso último estabelecimento de crédito genuinamente paraibano. Por que não se fundir o Paraiban ao Banco do Nordeste do Brasil? De início estariam resguardados os interesses dos funcionários, garantindo-lhes os empregos. Por outro lado, tem o BNB uma grande tradição de assistir a agro-indústria e a pecuária, que constituem (e serão sempre) os esteios de nossa riqueza.

A solução seria vantajosa também ao BNB, que receberia todas as agências do Paraiban, hoje espalhadas pelo interior do Estado, na Capital, em Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Este patrimônio não é de se jogar fora. No final a solução contentaria a todos, colocando, ainda, ordem nas coisas e evitando de se tocar num banco estadual como se fôra uma bodega de esquina.

O acervo imobilizado do Paraiban dá para ressarcir suas dívidas, e o restante seria investido em aquisição de ações do BNB. Todo semestre essas ações dariam filhotes e dividendos; valiosos rendimentos para o nosso Estado.

O que vale para o Paraiban serve també para o Bandern (Banco do Rio Grande do Norte) e o Banco do Piauí".


A. Tito Filho, 27/10/1990, Jornal O Dia

CRUELDADE

Theo Gigas, na crônica Touradas - Uma Crueldade Inútil, escreveu: "Não existe um só argumento que justifique tamanha monstruosidade, que nada tem de esportivo ou de artístico. A única arte consiste na exploração de pessoas que gozam com volúpia o espetáculo de tortura e morte".

Muitos escritores têm descrito e estudado o espetáculo das touradas espanholas, que se realizam principalmente na Praça de Touros, em Madri, todos os domingos - um imenso anfiteatro de estilo mourisco, luxuoso, original. A festa recebe o nome de corridas de touros. Em cada corrida se matam seis touros, dois para cada toureiro.

Fonseca Fernandes assistiu a um desses espetáculos e o descreve nas suas diversas fases. A primeira é a de excitação do animal, quando surge o picador montado a cavalo e que, munido de longa vara, submete o animal a uma tortura de picadas: "O picador arremata com a puya, triângulo de ferro que fustiga as espáduas do touro". Vem a segunda fase, a das banderillas, também excitadora. Homens de pé espetam, com agilidade, no animal banderillas coloridas "na mesma região fustigada anteriormente pelo picador". A última fase corresponde à muerte. Vem o toureiro, que dispõe de quinze minutos para a luta. Se o matador não cumpriu a missão, o touro volta ao curral e o toureiro toma extraordinária vaia. O touro morto também é vaiado. "O espanhol vaia sempre, manifestando alegria por qualquer dos resultados. Inclusive quando o touro mata o toureiro".

Existem os museus de toureiros, em que se guardam cabeças de animais, espadas, roupas. Num deles, figura retrato a óleo de Manolete, Manuel Rodriguez Sanchez, herói nacional de touradas, de carreira fabulosa, morto pelo touro "Isleno", em 1947. Tinha 30 anos o ídolo de Espanha.

O sacerdote Luciano Duarte admite que nesses espetáculos se vê sobremodo o aspecto de selvageria, na seguinte descrição: "O touro está fatigado e ofegante. Escorre-lhe o sangue abundantemente. O toureiro se aproxima de frente, para enterrar a espada. Momento perigoso. O touro agora está com as duas patas dianteiras paralelas. É o momento azado, pois esta posição permitirá que a espada se enterre até os copos, pouco adiante do pescoço do animal. O toureiro avança e tenta o golpe. A espada se afunda e fica enterrada, o povo aplaude delirantemente e grita olé, e o touro bambeia nas pernas inseguras, para logo cair morto".

Num romance célebre, "A Serpente Emplumada", Lawrence mostra com maestria esse "espetáculo de sangue e tripas". Urros do povo. Glória e emoção.

Como se explica o fenômeno?

Luciano Duarte adverte que a tourada, para o espanhol, é um espetáculo de arte: "Um balé em que o homem enfrenta o touro, em que a inteligência desafia a força bruta e vencerá". E o ilustrado escritor vai adiante, vendo na Espanha das touradas "restos de sangue mouro em efervescência, descarga do instinto de agressividade".

Por que esses homens se dedicam a tão cruel e desumano esporte? - pergunta Fonseca Fernandes. E explica: "Existe neles uma verdadeira adoração por esse gênero de exibição. Em touradas cultivam-se a destreza e a intrepidez das mais fortes emoções, nelas há todo um ritual de elegância perfeitamente enquadrado na vida do espanhol".

Os espanhóis, aliás, dizem que, como animal, o touro "teria de morrer de qualquer maneira; na praça mostra suas qualidades guerreiras e morre heroicamente". Ou mata - deveriam acrescentar.

As touradas foram vistas por Victor Hugo: "Em todas as corridas de touros aparecem três feras que são o touro, o toureiro e o público. O grau de brutalidade de cada um desses brutos pode-se calcular pelo seguinte: o touro é obrigado, o toureiro obriga-se, o público assiste por um ato espontâneo de sua graduação: o touro provocado defende-se; o toureiro, fiel ao seu compromisso, toureiro; o público diverte-se. No touro há força e instinto; no toureiro, valor e destreza; no público não há senão brutalidade".


A. Tito Filho, 06/04/1990, Jornal O Dia

sábado, 17 de dezembro de 2011

TERESINA - LOUVAÇÃO

A cidade alcançou progresso em todos os setores. Antes de tudo tranqüila e afetiva. Vale um beijo quente de fraternidade. Manhãs e tardes coloridas. Corações alegres. Gente que gosta da humanidade, recitando o poema da convivência irmã. As suas noites são de amor. Nos bancos das pracinhas de encanto, pares agarradinhos, arrulhando afeto, cheirando-se, mordendo, polícia distante, gente que passa fazendo que não vê. Juca Chaves disse no Rio de Janeiro: "Se peito fosse buzina, ninguém dormia em Teresina".

As mulheres teresinenses são as mais carinhosas destes brasis. E criaram a linguagem dos olhos para a revelação do sublime sentimento do amor. Elas têm olhos de querer e de não-querer.

Vem brasileiro, irmão de outras paisagens, TERESINAR, um verbo doce, expressivo, que se reza com carinho. O centro é uma festa permanente. Da praça Rio Branco, coração comercial da cidade, parte-se para o Parque da Bandeira, bem cuidado, convite ao descanso. além o rio Parnaíba, o velho monge de barbas brancas alongando... Junto às margens, lavadeiras batendo roupa, alguma de seios à mostra. Num dos lados do Parque, o antigo Palácio da Justiça. Antes, sede do Poder Executivo e residência dos presidentes da província e governadores até que foi adquirido o Palácio de Karnak.

Partinho do Parnaíba, o Mercado Velho ou Central, construído há mais de cem anos. Aí de tudo se vende: carnes, peixes, verduras, frutas, sandálias, calças, lamparinas, panelas, louça, mezinhas, beberagens eróticas como a famosa catuaba, pós mágicos. Camelôs propagam cura-tudo, literatura de cordel, alguns cegos recitam lamurientos versos de arrecadar esmolas. E dezenas de restaurantes ao ar livre, com comida feita sob as vistas do freguês, servem os mais variados pratos, sempre apimentados: fritos, sarapatel, buchada, panelada, mão-de-vaca, vísceras. Um arremedo dos mercadões de Fortaleza e Salvador. Um colorido especial à vida da cidade. No mercadão a gente encontra o sujeito que vende maconha, o bicheiro anunciando o milhar do jacaré e as mulatas mais desconfiadas do mundo, cheirando a brilhantina flor do amor. E muito chá-de-burro, o talentoso mucunzá.

A Casa Anísio Brito merece visitação. Museu e Arquivo do estado, guarda muita preciosidade que precisa de ser vista e consultada.


A. Tito Filho, 29/01/1990, Jornal O Dia

FESTAS

Dezembro, último mês de 1989. Natal. Na gruta de Belém na Jordânia, deu-se o mistério que Maria tinha no seio, um mistério de amor. Nenhuma festa tem o esplendor da que comemora a vinda do Messias ao mundo. A missa do galo e a confraternização familiar emprestavam ao quadro natalino sem igual. Tudo simples, singelo, para as comemorações espirituais de homens e mulheres, na contagiante alegria de todos. O padre Raimundo José Airemorais, com autoridade irrecusável, sustentou: "Hoje, infelizmente, o Natal está de alguma maneira se esvaziando no sentido de que o conteúdo central do Natal não é mais percebido nem mesmo celebrado pela grande maioria do povo. hoje em dia se faz do Natal uma espécie de pretexto e de ocasião para se buscar outros interesses, sobretudo no mundo do consumismo. O Natal de hoje  é uma propaganda".

Acentua o brilhante mestre que o Natal se tornou esbanjamento, fato nitidamente pagão.

A véspera do ano-novo também se festejava de modo decente e memorável. Os clubes promoviam bailes que se prolongavam até pela madrugada, num ambiente de respeito e cavalheirismo, na chamada alta-roda como na classe média.

Um encanto as festividades de Natal e Ano-Novo de anos atrás. Tempos inesquecíveis.

Hoje, essas duas grandes datas são exploradas por um sistema industrial e comercial sem entranhas. Durante semanas televisões e rádios azucrinam a coletividade em propagandas malsãs que oferecem as mais diversas modalidades de objetos para presentes, sobrecarregando sobretudo os raquíticos ordenados dos pobres, num país como o Brasil, devedor de somas fantásticas aos banqueiros internacionais, de baixa renda dos cidadãos, analfabetismo, habitação desumana, fome endêmica, desemprego e subemprego. Desmanda-se a burguesia nos dinheiros fáceis, obtidos por caminhos quase sempre desonestos. Promovem-se farras e esbanja-se dinheiro numa festa dividida entre poucos riquérrimos e milhões de misérrimos, num tripúdio revoltante sobre a desgraça nacional.

Na passagem de 1988 para 1989, a ganância de alguns fez que um barco naufragasse com o sacrifício de cinqüenta e cinco pessoas. Nada se sabe sobre a punição dos responsáveis pela tragédia. Se fossem pobres, os criminosos já se encontravam atrás das grandes.

Em Teresina, cidade de miséria quase absoluta, em que se abrigam muitos milhares de sofredores que abandonaram o campo por absoluta falta de condições de vida e, incentivando a megalópole, passam fome e morrem debaixo das pontes - na capital piauiense o soçaite ocioso dissipou milhões de cruzados, no afogamento das uiscadas, nos arrotos fartos provocados pela comida sofisticada. Ninguém se preocupou com as aflições dos pequenos, e todos estiveram indiferentes a penúria dos assalariados. Condenável desperdício. Imperou a estroinice. Num dos hotéis para milionários, deu-se uma festança afrontosa, farra grossa, num requinte de gozação de milionários. Para a noitada vendeu-se o ingresso por mil e duzentos cruzeiros novos, um salário mínimo dos infelizes que mourejam de sol a sol.

O cenário dos gastos nababescos com a embriaguez e as farturas das mesas, num requinte de insensibilidade, jamais seria conveniente à eclosão do mistério que Maria tinha no seio. Por esta razão o Evangelho diz que não havia lugar para eles na estalagem. José escolheu o silêncio e a humildade para o último toque no quadro vivo do Natal.

O Natal do Cristo, nos dias de hoje, bem acentua o padre Raimundo José, é fabricado pelos grandes meios de comunicação, em busca do lucro desmedido, na adoção de uma publicidade para o supérfluo, a fim de que a bolsa do pobre emagreça ainda mais.


A. Tito Filho, 20/01/1990, Jornal O Dia

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

JARRINHA

Chamava-se João Miguel Jarrinha, o jarrinha, como era conhecido de todos. Baiano de nascimento. Idoso. Popularíssimo. Viúvo. Pobre. Antigo professor público jubilado. residia sozinho em Teresina, mais de noventa anos passados.

Um feio dia encontraram-no morto, na rede da dormida, assassinado, o frontal despedaçado por forte bordoada de pulso rijo.

O crime abalou a cidade tranqüila. Levantaram-se conjecturas. O morto não tinha inimigos. Freqüentava as melhores rodas da cidade. Votava grande culto à formosura das mulheres. Amor platônico. Publicava o jornal de sua propriedade, intitulado "O Lacrau".

Na noite do crime, conforme se supunha, recolheu-se cedo à residência, pois dele se notou ausência em certos pontos em que habitualmente comparecia.

A polícia voltou atenções para Raimundo, de menor idade, que morou com Jarrinha algum tempo e a quem a vítima dedicou grande afeição. O outro suspeito para os policiais foi Higino Pereira de Araújo, músico e sapateiro, com quem Jarrinha tivera discussão por causa de um par de botinas, que não saíra nos conformes do contrato.

Raimundo contou que estivera com Jarrinha na véspera do acontecido em companhia de um colega e o vira adormecido numa rede, na sala de jantar. Acordou-o e com ele manteve rápida conversação, retirando-se com o amigo, que tudo confirmara.

Higino encontrava-se em Campo maior. De viagem para a cidade pernoitou com os companheiros em caminho, o que foi provado.

Higino Cunha, mestre ilustre e jornalista famoso, narrou que a polícia prendeu Raimundo, submetendo-o a suplícios. Extorquiu-lhe a confissão do crime. Embora menor, não teve curador idôneo. O júri condenou-o a dezesseis anos de prisão. Não houve apelação da sentença. A pena foi cumprida integralmente na velha penitenciária de Teresina.

O povo, porém, julgava que Raimundo fora vítima de clamoroso erro judiciário e sempre desconfiou de Higino, que anos depois de cumprida a sentença, adoeceu, febre e calafrios, segundo João Pinheiro, atendeu a pedidos e submeteu-se a confissão religiosa: "Mas ao terminar a confissão lhe declara peremptoriamente o sacerdote que não o absolveria, sem que ele, em presença de testemunhas, revelasse o que lhe referia, uma vez que disso dependeria a reabilitação de um inocente".

Levado maneirosamente pelos bondosos conselhos do confessor - narra João Pinheiro - com surpresa de quantos o ouviam, numa voz estertorante e panosíssima, revelando o mais profundo arrependimento, confessou que, por causa de pequena desavença que tivera com Jarrinha, resolvera assassiná-lo, o que, realmente, num momento de irreflexão, levara a efeito sem comprometer-se, aliás, porque, partindo, em certa ocasião em companhia de diversas pessoas, para Campo maior, à noite, enquanto aquelas dormiam, distante algumas léguas, regressara a Teresina, onde efetuaria o crime sem nenhuma dificuldade, porque, encontrando aberta a porta da rua e Jarrinha adormecido, descarregara-lhe, sobre o crânio, forte bordoada com uma acha de lenha que apanhara na cozinha e voltara a agasalhar-se entre companheiros que jamais suspeitaram da terrível verdade.  

Depois - termina João Pinheiro - como se nada mais devesse acrescentar, cerrou os olhos e faleceu imediatamente.

José Maria da Silva, em 1929, escreveu no jornal "Estado do Piauí" que Higino jamais fez a confissão que lhe atribuíram. Morrera inconscientemente de insulto cerebral, sem fala. O próprio padre Fernando, só depois de muita relutância, consentiu em acompanhar-lhe o enterro, porque Higino morrera sem confissão.

Com quem a verdade? Quem matou Jarrinha?


A. Tito Filho, 18/04/1990, Jornal O Dia