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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

TERESINA

Vejo-a sem a minha infância, sem os dias queridos que não voltam mais, as saudades provocando nó na garganta, um choro que não consola. Sem o CaiNágua, o cabaré das garotas de segunda classe, perto do Parnaíba, que os meus olhos de adolescente desejavam, mas os cânones da época proibiam. Sem os circos, na praça Deodoro, grandões, palhaços engraçados, ameaçando as velhotas atiradas com o troncudo pedaço de macaxeira. Na frente do imenso toldo, dezenas de bancas, na venda de frutas descascadas, refresco, sorvete de gelo rapado e mel de fruta, gostoso como o diabo, frito de carne de porco, beiju salpicado de farelo de coco. No calor das tardes, máquinas equilibradas na rodilha da cabeça, com a manivela de rodar e fabricar o melhor sorvete do mundo, o caboclo, alpargata chiadeira, passeava as ruas, a vender a guloseima.

Vejo-a sem o pega-pinto gelado, que a gente ia comprar, oito da noite, na jarra, uns oito copos, para a família à espera na roda da calçada. Sem o Doutor, dono de frege, estabelecimento modesto, mesinhas sem toalhas, pimenta malagueta danada, cachorros gafentos e famintos à espera do osso que o freguês alisara, depois de engolir tripa e bucho - a panelada da cidade, a cinqüenta metros da praça Rio Branco. Sem o Bar Carvalho, de elite, vendia cafezinho, chocolate com ovo e sem ele, sobretudo o filé de grelha, enfeitado de ervilha, azeitona, alface e farofa. Manjar dos deuses, do cozinheiro espanhol Gumercindo, um mágico em comedorias.

Vejo-a sem o alarido das pipiras tentadoras - as mocinhas pobres empregadas da Companhia de Fiação e Tecidos Piauiense, ruído de máquinas o dia todo. As garotas, vestidinhas de chita, merendavam banana, daí o apelido que a crônica registra.

Vejo-a sem a presença de Celso Pinheiro, poeta e tuberculoso, fatiota branca engomada e reluzente, chapéu de palhinha, gravata borboleta... irreverente...; sem Higino Cunha, mestre verdadeiro, a caminhar pelas vias públicas, aqui e ali o trago de bebida destilada...; sem Pedro Brito, calças velhas de mescla, cornimboque de rapé nos bolsos largos, suado, a ironizar homens importantes...

Vejo-a sem as funcionárias domésticas, mocinhas morenas, que o povo denominava curicas, porque recebiam o prato de comida no peitoril da residência... Caboclinhas de pé de esquina, na cidade pouco iluminada... Sempre perdiam o cabaço para o filho-família, o moço dengado.

Vejo-a sem o cabaré da Raimundinha, alegre, as meninas de vestido abaixo do joelho, cada qual com a sua alcova de deitar com quantos machos obtivessem na noite comprida... Tiravam a roupa de luz apagada... Que Tempo!

Vejo-a sem as pracinhas de donzelas faceiras, que rodavam num sentido, os gajos em sentido contrário no fascinante namoro de olhos... No cinema, o casal se dava o gosto da bolinação... Namoro de mão nos peitinhos arrebitados...

Vejo-a sem o símbolo que foi a Maria Préa, mulata boa de cama, com estudante de bolso vazio ou desembargador de prestígio firmado.

Hoje, vejo-a urbanizada de pombais, ou casinholas habitadas do êxodo interiorano; povoada de veados de luxo ou simples viciados na inversão dos locais de prazer; vejo-a na falsa convivência dos coquetéis, das uiscadas e das festas de caridade; vejo-a no comércio com o nascimento de Jesus e com as mães, merecedoras pelo menos de um pouco de respeito; vejo-a despudorada, meninas ricas sem roupa, por deboche, meninas pobres do mesmo jeito por miséria. Vejo-a uma imensa putaria de homens e mulheres, com as devidas exceções; Vejo-a violenta, estúpida, deseducada - tipos debaixo-da-ponte, alguns felizardos da vida ociosa à custa de golpes e falcatruas e outros tantos no repasto oficial da República sem freios.

Vejo-a sem futuro, sem esperança, mas ainda creio no resto do otimismo que me sustenta os olhos sofridos da saudade dos tempos que não voltam mais...


A. Tito Filho, 19/08/1990, Jornal O Dia

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