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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

CARTA SEM POLÊMICA

Minha talentosa coleguinha de jornal "Diário do Povo". Cordiais saudações. Na edição de domingo, 16 deste dezembro natalino, li a entrevista que você fez com o ex-governador José da Rocha Furtado, e gostei das suas perguntas e das respostas do entrevistado, num trabalho bem feito, como se estivessem em inteligente pingue-pongue de Marília Gabriela. Antes, porém, do texto conduzido claramente, fez a prezada amiga uma espécie de introdução, aquilo que os velhos jornalistas como eu, o Araújo Mesquita, padrão de dignidade profissional, Deoclécio Dantas, lutador de muita altivez, chamavam de NARIZ-DE-CERA. E na dita e supradita explicação introdutória, a simpática confreira atesta: "Nos últimos quatro anos, o nome mais lembrado por deputados e políticos foi o do ex-governador rocha Furtado".

Nunca, caríssima repórter. Nos últimos quatro anos, 1987 a 1990, não me recordo dessa preocupação da fauna dos homens públicos do Piauí. Pelo contrário, o nome mais usado nos jornais, nos rádios e tevês tem sido o de Alberto Silva.

Adiante você observa e atesta: "Fora dos meios políticos, deputados como Eurípedes de Aguiar, Santos Rocha, Demerval Lobão e João Mendes promoviam sessões de tortura psicológica, na tentativa de intimidar Furtado...". Não, colega de rara acuidade. Fui testemunha ocular da história. Eurípedes Aguiar, Demerval Lobão e João Mendes não eram, nessa época, deputado, federais ou estaduais, e os três pertenciam ao mesmo partido do governante, a UDN, e defendiam rocha Furtado por todos os meios de que dispunham. Exercia o mandato de deputado o Dr. Santos Rocha, orador animado e causídico hábil e corajoso, e não me consta que ele promovesse sessões psicológicas para que se torturasse psicologicamente o governador, de forma que se praticasse a lavagem cerebral dos criminosos porões das polícias ditatoriais.

A campanha de que Rocha Furtado DAVA AZAR foi criada no jornalismo oposicionista. No tempo de Hermes da Fonseca, confrades de jornal e compositores carnavalescos atribuíam ao presidente da República a URUCUBACA, o mesmo que azar, fluido negativo que se ligava, em Teresina, também ao desembargador Cromwell de Carvalho, conterrâneo de rara dignidade moral.

A crença de que certas pessoas distribuem AZAR desde que passem por nós ou quando têm os nomes pronunciados, pertence ao povo em virtude de circunstâncias adversas ligadas por coincidências aos cidadãos que a maledicência humana pretende destruir ou levar ao ridículo.

Perto do fim da parte introdutória, a zangada coleguinha escreve: "Quem desfez as lendas que existem em torno daquele que seria o mais impopular dos governadores do Piauí são artigos de jornais cariocas e discursos na época pelos opositores".

As lendas se criam pela sabedoria popular. E sempre elas provocaram as mais extraordinárias obras da literatura universal.

Rocha Furtado foi ídolo dos teresinenses e ao seu lado, na defesa do seu governo estiveram famosos jornalistas brasileiros como J. E. de Macêdo Soares e Danton Jobim e parlamentares do tope dos senadores Luiz Mendes Ribeiro Gonçalves e José Américo de Almeida. A imprensa de todo o Brasil defendia o governante do Piauí tornando-o popularíssimo e cada vez mais apoiado pelos piauienses. Só a paixão política dizia o contrário, não creio que a coleguinha se sustente de atitudes passionais no seu jornalismo.

Noutro ponto do NARIZ-DE-CERA a prezada jornalista afirma que Rocha Furtado: "TROCOU ATÉ DE CIDADANIA - HOJE É MUITO MAIS CEARENSE DO QUE PIAUIENSE".

Rocha Furtado confessa que deixou o Piauí por causa das dívidas contraídas.

Buscou Fortaleza para recuperar as finanças domésticas. Resta saber se os cearenses que residem em Teresina trocaram de cidadania, pois a cidadania tem a proteção da soberania nacional, desconhecendo fronteiras entre as velhas províncias, ou Estados da Federação.

No fim a garota escreve: "Furtado não admite a comparação do seu com o atual governo".

Rocha Furtado procurou-me para me informar que nunca fez a afirmativa referida à jornalista entrevistadora.

Minha intenção nesta carta está no restabelecimento da verdade, uma vez que não me compete a defesa da política que os homens públicos realizam ou realizaram no Piauí. Interessa a todos a realidade dos fatos.


A. Tito Filho, 20/12/1990, Jornal O Dia

TECNOCRACIA

Conquistei o titulo de bacharel em direito, com distinção em quase todas as disciplinas do curso, e desde rapaz gostava muito de estudar a língua portuguesa. Iniciei o exercício de cargos públicos na qualidade de delegado de trânsito e costumes de Teresina, do qual solicitei exoneração para retornar ao Rio e prosseguir estudos. Fiz concurso e me aproveitaram no antigo instituto dos comerciários na capital piauiense e voltei a minha cidade do meu xodó para assumir as funções e concluir o curso jurídico, o que foi feito.

Em 1951, o governador Pedro Freitas me fez convite para lecionar e me nomeou professor de português do Colégio Estadual e de sociologia educacional na antiga Escola Normal. Dei conta do recado, como podem atestar os meus antigos alunos e alunas. Fiz concurso sério e difícil.

Em 1954, o governador Pedro Freitas convocou-me a Karnak e me convidou para dirigir o Colégio Estadual. Antes, em 1952, os colegas de jornalismo elegeram-me presidente da recém-criada associação dos Jornalistas, reeleito por dois mandatos mais. A entidade passou a sindicato.

Nas funções de diretor do Colégio Estadual me conservou o governante seguinte, general Gayoso e Almendra, até o final do mandato. Tive substituto no governo Chagas Rodrigues. O educandário tornou-se modelar. Respeitado. Exemplo de ordem e disciplina.

Ano de 1962, o suplente de senador Clark substituiu Leônidas Melo, que se licenciara, no Senado, e me indicou para a presidência da Comissão de Abastecimento e Preços do Piauí ao governo federal. Enfrentei o comércio ilegal do trigo, da carne, as cobranças altas de entrada de cinema, a exploração no comércio do pescado, os vendedores de leite. Venci. Contratei Luiz Noronha para trazer trigo da Bahia e fretei aviões e trouxe carne do Maranhão, na fronteira com o sul do Piauí. Importei peixe do amazonas. E assim passei adiante. A verdade está em que tudo passou a ser vendido ao público por preços justos de acordo com a fixação honesta dos valores.

Exerci a elevada função de secretário da Educação e Cultura, no governo Clímaco de Almeida. Realizei administração de alto nível, conforme se vê do depoimento de Itamar Brito, em história publicada sobre esse órgão público. Em 1975, no primeiro governo Alberto Silva, recebi a incumbência de dirigir a Secretaria da Cultura, por dois meses, em que editei uns vinte livros, promovi a festa de reinauguração do teatro 4 de Setembro, maravilha de festa, sem quase despesa para os cofres públicos.

Desde 1971, sou presidente da Academia Piauiense de Letras, reeleito seguidamente para vinte anos de mandatos.

Nunca pedi cargos a governador algum de minha terra. Convidaram-me para os cargos provocando-me surpresas. Nunca fui técnico de cousa alguma, exceto da leitura, da honestidade, do desejo de fazer as cousas com o rigoroso cumprimento da lei. E não preciso de empregos, pois vivo modestamente, mas sem dividas e sem picaretagens.

A tecnocracia instituída pelo presidente Fernando Collor para administrar a República corresponde a fracasso generalizado. O próprio governo aumenta os combustíveis, aumenta as taxas dos correios, aumenta preços do pão e do leite, aumenta as taxas dos correios, não permite que os operários ganhem o necessário para as necessidades primárias da vida. A inflação vem subindo sempre inquietando as camadas populares. Há no Brasil um governo de tecnocratas, cujas palavras ao público, nas televisões, ninguém entende. Além disso, falam um péssimo português, o economês.

O futuro governo de Freitas Neto deve ter técnicos, sem esquecer que estes nem sempre se guiam acertadamente.


A. Tito Filho, 18/12/1990, Jornal O Dia

PROMESSAS

Num país faminto, em que o povo não pode ter civismo porque vive de pança vazia, num país abúlico, de milhões de analfabetos, o presidente da República faz o que lhe dá na veneta, e pode, querendo, chegar ao desmando e à prepotência.

No Brasil, o chefe do Executivo legislava quando, num ato de força, se fundava o sistema ditatorial, do jeito que praticou Getúlio Vargas, de 1930 a 1934 e de 1937 a 1945, ou da forma que estabeleceram os militares, de 1964 a 1985, épocas de severas e cruéis ditaduras. Sob o regime do presidente Fernando Collor vigora a MEDIDA PROVISÓRIA, criada pela Constituição Federal de 1988, em caso de relevância e urgência, circunstância que não se vem observando, e o presidente legisla em matéria sem as exigências constitucionais e que bem poderia ser objetivo de projetos de lei, normalmente.

Nunca vi o Brasil na situação dos dias que correm. Nada funciona. Deterioramento da educação e da saúde. Cultura abandonada. Megalópoles de problemas angustiantes. Insegurança social generalizada. Industria do crime por toda parte. Renda das pessoas em desnível insuportável pelos assalariados. Desemprego e subemprego. Incompetência. Instituição do ócio no funcionalismo público. Descrença nos homens públicos.

A euforia industrializante de Juscelino Kubistchek deu no que deu: a busca da cidade pelas populações do campo, para a fantasia do ganho fácil e de conforto, mas cujo resultado aumentou a favelização dos enormes centros urbanos e os apartamentos da população debaixo das pontes.

Na campanha presidencial de 1989, Fernando Collor de Mello fez promessas que o tornaram símbolo da esperança dos brasileiros. Liquidar-se-iam os MARAJÁS, indivíduos afortunados e privilegiados de ganhos absurdos. Dar-se-ia a moralização da vida pública. Derrotar-se-ia. A 15 de março de 1990 assumiu o fazedor de promessas. Chegou o Natal. Os marajás continuam a desafiar o governo, a burocracia brasileira prossegue o seu cortejo de malefícios, o processo, inflacionário martiriza no dia-a-dia da subida dos preços.

A única medida que se teve, até agora, foi a de confiscar o dinheiro dos brasileiros confiados aos estabelecimentos de crédito para que rendessem juros. O governo arrecadou-os prodigalizando mais aflições às classes necessitadas.

A ministra Zélia, rica de gestos autoritários, no começo do governo Collor apostava na inflação zero. Agora, pelos aparelhos de televisão, culpou os empresários e pede paciência.

Collor ataca os exploradores do povo, esquecido de que o seu governo aumentou de vez em quando os combustíveis, as taxas dos correios, o preço do pão e do leite, das passagens de ônibus e dos aviões. Como evitar que os industriais e comerciantes não aumentem os preços dos seus produtos, e o próprio governo oferece o exemplo de aumentos constantes?

A verdade verdadeira está na evidência de que os tecnocratas cada vez mais se desacreditam com os planos salvadores: Plano Cruzado, Plano Bresser, Plano Verão e mais que seja, um só deles acertou cousa alguma.

E milhões de brasileiros passam fome e vivem dias de medo e desesperança.


A. Tito Filho, 25/12/1990, Jornal O Dia

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

METAFÍSICA

O ministro da ditadura de Getúlio Vargas, apelidado no tempo de Chico Ciência, era Francisco Campos, o autor da carta constitucional de 1937, outorgada ao povo num frio golpe militar do mesmo ano. Coube a Francisco Campos efetivar uma das melhores reformas educacionais, com a criação dos vocacionais pré-jurídico, pré-médico e pré-técnico. Como aluno do primeiro, estudei filosofia e recolhi noções de metafísica, ciência suprema, que estuda a natureza ou a substância do real, e constitui o fundamento da ética aristotélica. Forma superior de vida contemplativa, que proporciona felicidade ao homem.

Conheci sobre o assunto o pensamento de Descartes, Spinosa e Leibniz. Estudou-a Wolf. O criticismo de Kant assinalaria a crise mais grave da metafísica, e contra esta reage Lomte para quem o estado metafísico não tem originalidade e a ele o francês se refere de modo pejorativo. O materialismo nega a metafísica.

"Em grande parte, como já se observou, os movimentos filosóficos que preconizam o retorno à metafísica, tendem a ignorar o Kantismo, o positivismo e o materialismo histórico. Entre as principais representantes da metafísica contemporânea, devem-se mencionar Blondel, Max Scheler, Nicolai Hartman e Alfred N. Whiehead, Henri Bergson e Martin Heidegger... Para Bergson, que retoma em seus livros fundamentais os temas da metafísica tradicional (Deus, a imortalidade da alma e a liberdade), a matéria é inércia, geometria e necessidade, a vida é contingência e espontaneidade, e o espírito, liberdade e criação..." Para Heidegger filosofia quer dizer metafísica.

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Sei muito pouco sobre esses temas que envolvem profundos e graves conhecimentos filosóficos. Mas me entusiasmo no momento em que tomo ciência de que no Piauí se efetivará, dentro de pouco tempo, a I Conferência Metafísica Piauí/Brasil/Estados Unidos, para desenvolvimento de temas metafísicos dos mais interessantes e oportunos, na palavra de ilustrados conferencistas. Acontecimento de estudos idênticos promoveu em São Paulo a Fraternidade Pax Universal, em junho deste 1990, contribuindo-se para uma vida mais saudável e harmoniosa da imensa coletividade paulistana.

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A festa espiritual e cientifica do Piauí tem como idealizadora e promotora a educada e culta Dra. Dulce Duarte Pinheiro Correia, com o apoio de diversas instituições educacionais e literárias e pretende estudar assuntos do mais relevante valor social: os conflitos provocados pelo crescimento urbano e o equilíbrio do homem no seu processo de vida, com o objetivo de proporcionar reflexões e introduzir grupos interessados na prática do autoconhecimento a partir da visão metafísica. Existem oportunidades de novas relações voltadas à verdade existencial, conforme admitem os organizadores da programação, para o período de 9 a 11 de novembro porvindouro.

O projeto da conferencia já se encontra elaborado por pessoas da melhor categoria intelectual, como Dulce Duarte Pinheiro Correia, Antônio de Deus e Maria do Socorro Caldas Borges, que sustentam esta verdade: "Os momentos difíceis que vivemos provocam tensões, angustias e medos. Esse estado de insegurança se reflete em nosso organismo gerando doenças físicas e toda espécie de sofrimento. A falta de informação faz com que esses sofrimentos se multipliquem numa cadeia infinita. Mas para todo mal há uma solução e o melhor caminho é aquele que conduz à serenidade, ao autodomínio e a perfeita felicidade".


A. Tito Filho, 29/09/1990, Jornal O Dia

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O BOM CONTISTA

Afonso Ligório nasceu no território piauiense de Luzilândia. Jornalista. Fez algumas andanças e fixou-se em Brasília, dedicado ao magistério e a literatura e em ambos os misteres tem alcançado triunfos verdadeiros. Consistia dos melhores, de raro poder de observação. Publicou SÓ ESTA VEZ, já traduzido para o espanhol e agora enrica a literatura nacional com A HORA MARCADA, sobre que escreveu mestre M. Paulo Nunes:

"A propósito do anterior livro de contos de Afonso Ligório Pires de Carvalho - Só Esta Vez... Histórias contadas (Editora Thesaurus - Brasília-DF) já havíamos tentado uma definição do tipo de gênero por ele adotado quando o identificamos com o "conto masnfieldiano" por oposição ao "conto história" com começo, meio e fim, cuja tradição radica em Boccacio e teve modernamente como representante maior Maupassant, entre nós, o gênio de Machado de Assis.

Com este seu novo livro - A Hora Marcada, retoma ALPC o mesmo fio da narrativa no apuro de uma técnica de expressão em que o deslance é engendrado de forma a levar o leitor a sentir uma espécie de "soco no estômago", conforme a expressão do romancista português Fernando Namora, em seu último livro, publicado antes da morte" - jornal sem data.

São do mesmo autor as considerações a seguir transcritas, na caracterização desse gênero de narrativa: "Ainda recentemente, o Nobel Isaac B. Singer chamou ao conto uma "fatia de vida", decerto em oposição ao romance, que seria, pelo que se deduz, a "vida toda". Mas essas "fatia" terá de ser pois, altamente significativa. Na sua concisão no seu angulo de focagem restrito, o conto precisa de ser tão eloqüente que o leitor, através de uma breve personagem captada num instante decisivo e num contexto delimitado, consiga reconhecer ali a verdade da paisagem humana e a vida tal como ela é, na sua infinita complexidade. Daí que se possa entender muito bem que haja quem prefira Maupassant a Victor Hugo ou Balzac e Tchekhov ou Gogol a Tolstoi ou Dostoievski. Uma gota de água pode ser mais reveladora que uma enxurrada". (Cf. Fernando Namoro, in Jornal sem data, pág. 146 - Publicações Europa-América-Portugal).

Esta é pois a receita adotada por Afonso Ligório Pires de Carvalho nestes seus novos contos - captar o instante essencial ou a "fatia de vida" que possa caracterizar uma emoção, um estado de espírito definidores da condição humana.

E a realiza com uma técnica apurada de tal sorte que os contos reunidos nesta coletânea reinventam cada um deles a vida em seus momentos mais significativos. Contos como Depressão, por exemplo, podem ser emparelhados com as melhores narrativas do gênero entre nós.

Não poderia deixar de salientar aqui, como o fiz em outros termos, da vez anterior, que Afonso [é] um dos mais representativos valores da geração piauiense que revelaria figuras da altitude intelectual do poeta Hindemburgo Dobal e dos romancistas O. G. Rego de Carvalho e José de Ribamar Oliveira.

Por isso recorro ainda às anotações de Fernando Namora, no livro citado, ao fazer o elogio de seu contemporâneo Eduardo Lourenço: Tentando, e numa paróquia de tribalismo, permitiam-me uma anotação tribalista: sabe que Afonso Ligório Pires de Carvalho seja dos da minha geração e que, enfim, ter bebidos as primeiras águas na matriz que também a minha. Não é por acaso que muito do modo de ser de Afonso é o que é. A generosidade e um sentido de justiça que inventam".


A. Tito Filho, 23/11/1990, Jornal O Dia

O DINHEIRO

Era um paraibano baixote, míope desde moço, encheu de compostura a vida nacional. Formou-se em Recife, em 1908, com os piauienses Simplício Mendes e Arimathéa Tito. Parece que chegou a residir com os dois na mesma "república" de estudante; pelo menos é certo que foi companheiro de quarto de Arimathéia. Formado, José Américo achou fascinante a vida política, e nela ingressou. Ei-lo, em 1930, como um dos chefes civis do movimento revolucionário que derribou Washington Luís, impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes e entregou o governo da República a Getúlio Vargas, de quem foi ministro da Viação, um grande ministro, voltado para os graves problemas do Nordeste. Enfrentou a terrível seca de 1932. Impôs-se à admiração do país, pelo trabalho, pela sinceridade, pela inatacável honestidade.

O esforço gigantesco como ministro, a linguagem franca de que se utilizava para o debate dos problemas políticos e administrativos, os brados de revolta contra o atraso da terra e a penúria do homem, a bravura com que desafiava os maus, a consagração do romancista de A Bagaceira - tudo isto lhe valeu imensa popularidade, na Paraíba como no Brasil.

A Bagaceira deu a José Américo uma posição invejável no cenário da literatura brasileira. Consentiu o autor em que o livro "é a tragédia da própria realidade". Livro violento, que agasalhou "almas semibárbaras pela violência dos instintos". O escritor interpreta essas almas sem artificialismo, nuamente, para não suprimir delas a grandeza: "Seria tirar-lhe a própria alma".

Romance do sofrimento do homem na terra escaldante - A Bagaceira também constitui um romance de amor, "concessão lírica ao clima e à raça", como diz José Américo - "problema de moralidade com o preconceito da vingança privada", da forma que ele define as paixões brutais do sertão.

Em 1937, arregimentam-se os políticos. Campanha eleitoral a vista. Eleições presidenciais marcadas para 3 de janeiro de 1938. Plínio Salgado, chefe do Integralismo (camisas verdes), candidata-se. Também se candidata Armando de Sales Oliveira, governador de São Paulo, político de grande conceito e prestígio. Getúlio manda que seus partidários apresentem José Américo como candidato oficial. O lançamento é feito por Benedito Valadares, governador de Minas. O paraibano aceita o encargo. Ganha as ruas, as cidades, pregando idéias, defendendo ideais.

Veio o golpe de Getúlio no dia 10 de novembro de 1937. Fechamento do Congresso Nacional. Prisão de adversários. Liquidação dos partidos políticos. Ostracismo para José Américo.

O paraibano tem sete fôlegos. Corajosamente, dia 22 de fevereiro de 1945, decreta, numa entrevista dada a Carlos Lacerda, a queda do regime getuliano.

Conheci José Américo em 1933, quando ele numa comitiva de Getúlio Vargas esteve no Piauí. Fez questão de visitar meu pai, seu antigo colega na Faculdade do Recife, na casa onde morávamos, modesta, na rua Eliseu Martins. Depois, ele, senador, em 1964, no Rio, visitei-o. Simples, afável, incentivador.

Nunca me esqueço de um dos seus dizeres lapidares num discurso político, campanha presidencial de 1937, quando analisava realidade brasileira:

- Eu sei onde está o dinheiro para o soerguimento do Brasil.

Hoje também eu sei onde está o dinheiro depois que, já maduro, compreendi a mensagem de José Américo.


A. Tito Filho, 26/09/1990, Jornal O Dia

INFLAÇÃO

Quando me entendi, vigorava no Brasil o padrão monetário chamado MIL RÉIS, denominação que nos transmitiram os portugueses. Não alcancei o vintém, correspondente à vigésima parte do mil-réis, nem a pataca, de valor fixado em 320 réis. Circulavam as moedas de metal seguintes: o tostão ou cem réis, e dez tostões valiam um mil réis; duzentos réis; o cruzado ou quatrocentos réis; a de quinhentos réis, amarelinha, e a de um mil réis, também da cor do ouro. Corriam também cédulas de variado valor.

Em 1942, Getúlio Vargas decretou novo padrão monetário, o cruzeiro, dividido em centavos. Eu me encontrava no Rio de Janeiro quando se deu a mudança. O mil-réis passou a denominar-se cruzeiro.

Nesta Teresina, em 1932, a gente comprava cinco bananas por um tostão e no Rio custava uma passagem de bonde, para longo percurso, a bagatela de 10 centavos. Por 10 centavos se comprava um jornal de 12 a 16 páginas.

O cruzeiro, no tempo do presidente Castelo Branco, transformou-se em cruzeiro novo e com o passar do tempo voltou a chamar-se cruzeiro, até que o presidente Sarney adotou o seu célebre cruzado que chegou a cruzado novo. Em março de 1990 voltava-se ao cruzeiro.

Interessante é que tais alterações na moeda se fazem por vontade presidencial, sem interferência do Congresso da República.

Durante muitos anos nunca ouvi falar de inflação. As mulheres referia-se, com a subida dos preços, a carestia, por mínima que fosse a alteração.

Durante cinco anos, no Rio, meu pai mandava quinhentos cruzeiros mensais, importância com que eu pagava a pensão de estudante, lavado e gomado, merendava, usava transporte, adquiria jornal e cigarros, ingressava em circos e teatros e ainda gastava com mulheres nos cabarés e com as namoradas de sorveterias.

Enfrentei a vida nas fases da mocidade e parte da maturidade e nunca ouvi falar de inflação ou li jornais em que se debatesse tal problema. A cousa começou ao que parece no governo de Juscelino, com a construção de Brasília, o maior elefante-branco do país, cidade malvada que se cerca das mais espetaculares favelas do planeta. Construída para quinhentos mil habitantes, já ultrapassou dois milhões de seres humanos.

A vertiginosa subida de preços prosseguiu nos governos seguintes e não esbarrou, se não nos dias fantasiosos do cruzado do presidente Sarney.

Inflação, deflação, recessão, choques heterodoxos, e quanto vocabulário que tudo batiza a incompetência dos homens que governam o país, sustentando verdadeiros polvos como as estatais e adotando empréstimos fabulosos, a juros exorbitantes, para a edificação de obras faraônicas, prédios de luxo espantoso, bem assim nas viagens de gastos absurdos com o objetivo de que dois governadores se abracem e se façam rapapés receptivos, como recentemente se verificou na visita de Bush ao Brasil, para os opiparos banquetes, enchedores dos bundulhos de comensais de peru e caviar, e das panças sacolejantes de uísque dos estranjas.

No fim de contas, os dois presidentes, com as técnicas avançadas de hoje, bem poderiam entender-se por telefone, onde o telefone [de] Collor receberia as ordens do chefão da violência internacional.


A. Tito Filho, 23/12/1990, Jornal O Dia

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

ALIMENTAÇÃO

Contam que o mundo comemorou neste outubro de 1990 o dia internacional de alimentação, certamente da alimentação racional, farta, higiênica, atentadora das exigências da natureza humana. Houve festas maravilhosas na Etiópia, nos miseráveis países africanos, na América Latina e nas suas encantadoras e nas suas encantadoras favelas, alegres e plenas de vida. No Recife, onde os meninos catam restos podres de comida nas latas de lixo, os fogos de artifício coloriram os céus. O presidente Bush discursou aos povos recomendando caviar e perus natalinos. Em Teresina, os restaurantes ofereceram banquetes opiparos aos milionários dos bairros de luxo, enquanto os populares espiavam de longe os manjares dos deuses deglutidos nas afetivas patuscadas. Pobre não come. As populações famintas se encontram diminuindo de tamanho. A ausência de nutrição correta embota a inteligência e priva a pessoa do civismo e da altivez.

Essas campanhas têm a finalidade de desviar a atenção das massas humanas miseráveis, que esquecem os padecimentos e as angústias por alguns dias na esperança de que realmente possam encher o bucho vazio. A publicidade oficialmente paga pelos governos engana os tolos e ignorantes, na matreirice subliminar para a conquista de consciências deformadas.

Alimentação é vida. Não se resume em entupir a pança de substâncias que nada revitalizam.

É alarmante a nossa situação em matéria de alimentação. E exclusivamente a isto se podem atribuir as consequencias devastadoras para o homem brasileiro, para o seu desenvolvimento e para a sua capacidade. A cor de nossa pele não responsável pelos nossos males, mesmo porque "há brancos que são mais escuros do que alguns negróides; o cabelo escuro e os olhos negros são comuns a todas as raças; encontra-se o mesmo indício cefálico em grupos das raças mais diversas; a mesma forma do cabelo existe entre grupos étnicos tão distanciados como os indígenas australianos e os europeus ocidentais; os grupos sanguíneos não definem as raças".

E se somos apenas vítimas orgânicas de um regime alimentar deficiente, cumpre-nos atenuar o seu cortejo maléfico, incrementado a nossa produção e reformando a nossa economia agrária, o que se obterá, como bem ensina Josué de Castro, com o aproveitamento de todas as terras cultiváveis circunvizinhas dos grandes centros urbanos, mecanização da lavoura, financiamento bancário da agricultura, intensificação do cultivo de alimentos, amparo e fomento ao cooperativismo, combate ao latifundiário e à monocultura.

"A fome e a doença são os únicos companheiros constantes da solidão forçada do homem brasileiro", inferiorizado por uma organização econômico-social defeituosa.

O homem brasileiro deve ser valorizado.

E queremos crer que estas palavras não se tornem mera frase sonora. Estas palavras devem receber um significado real no pensamento e nas ações quotidianas de todos os homens, mulheres e crianças deste país.

Não somos povos inferiores. Apenas nos falta combustível e ainda não resolvemos o nosso problema cultural.

Não somos brancos, nem pretos, mamelucos ou mulatos - somos todos brasileiros.

É para nós uma razão de orgulho que no Brasil todos sejam membros do mesmo corpo.

O preconceito nasce do erro e da ignorância.

Brancos, negros e mestiços - estudemos a grande pátria que os antepassados heroicamente defenderam, para que possamos compreendê-la e dignificá-la, num mundo livre.


A. Tito Filho, 20/10/1990, Jornal O Dia

CABEÇA-DE-CUIA

A estória vigorou na poesia e na prosa de folcloristas e de estudiosos das manifestações e crendices populares. O sujeito chegou a casa, faminto, hora da bóia, e a mãe do proprio nada tinha que lhe matasse a fome. Irado, muniu-se de osso enorme, um corredor de boi, e matou de pancadas a pobre velha. Cada qual sempre contou a seu modo o episodio, gente do povo e os escritores. Antes da morte, a vítima atirou praga ao filho perverso. haveria de permanecer nas águas do rio Poti, de Teresina, e só quebraria o encantamento depois que comesse sete Marias. O assassino assim vivia. Só deixava a cabeça de fora, boiando, daí a denominação que lhe foi atribuída de cabeça-de-cuia. Causava pavor. Homens e mulheres o temiam.

No livro ENCANTO E TERROR DAS ÁGUAS PIAUIENSES, Josias Carneiro da Silva dá segura interpretação ao cabeça-de-cuia. Tem-no como incestuoso e condenado, para o desencanto, a deflorar sete Marias, proeza dificílima neste mundo de hoje, de mulheres sem cabaço.

A lenda diz comer sete Marias. Na antiguidade mitológica a fecundação independia do contato masculino e das vias naturais receptivas, como sustenta Cascudo. Houve a crença da gravidez sine cuncubito. A cobra-grande amazônica engravida cunhã sem cópula, na crença do povo. Existiu época da fecundação oral e por causa disto se emprega comer como sinônimo de copular.

Cascudo conta que numa igreja do Recife há um quadro: Nossa Senhora ajoelhada ouve um anjo mensageiro de Deus e, das alturas, desce em diagonal um raio luminoso, alcançando a orelha esquerda da mãe do Altíssimo. A fecundação teria sido por processo auricular. E o povo logo criou o conhecido dito emprenhar pelos ouvidos.

O nosso saudoso Odylo Costa, filho, fez soneto bonito, na "Cantiga Incompleta", em que fala do poder sexual das águas do Parnaíba:

"Naquele tempo, núpcias e puras,
as mulheres vestiam-se de peixes,
uma camisa ou nada sobre a pele,
nádegas, peitos, púbis ofertados,
e o rio era possuído e as possuía,
no mergulho auroral entre os barrancos".

D'Humiac escreveu obra interessante sobre algumas grandes lendas da humanidade, afirmando que o mistério do mundo se explica pela imaginação e pela razão. Concluiu que os velhos mitos estão morrendo porque a ciência os derrota como a verdade.

Josias Carneiro da Silva antevê o desaparecimento das lendas e das fantasias, porque o próprio povo, que as cria, nelas passa a desacreditar, com o correr dos tempos, por através das explicações cientificas.

A imaginação, pouco a pouco, vai sendo substituída pela razão, do modo que Josias, indulgente e sabedor, revela no citado livro extraordinário.

X   X   X

Existem notáveis folcloristas no Piauí, no passado como no presente, como João Alfredo de Freitas, nos estudos sobre lendas e superstições no norte do Brasil, obra rara nos dias correntes. Material folclórico poderá colher-se em Hermínio Castelo Branco e Teodoro Castelo Branco, poetas populares, bem assim Clodoaldo Freitas, que compôs versos interessantes a respeito de temas folclóricos. Citem-se ainda o grande Fontes Ibiapina, João Ferry, Baurélio Mangabeira, que tanto se preocuparam com as manifestações do povo e sérios pesquisadores e intérpretes desses temas, da forma que trabalhou Noé Mendes.

Cito apenas os que já saíram desta para o destino final. não citei todos, mas alguns que me chegaram à memória. Entre vivos, existem nomes respeitáveis e aplaudidos, como também entre os falecidos. Fica para outra ocasião a lembrança.
    

A. Tito Filho, 30/11/1990, Jornal O Dia

CARROS

Quando cheguei ao Rio, na década de quarenta, já se verificava algum aperreio no tráfego de veículos, sobretudo na avenida Rio Branco, de trânsito nos dois sentidos. Só os ricos ou os bem aquinhoados de vencimentos possuíam automóvel. A classe média e o operariado se serviam de ônibus e do popularíssimo bonde, este último muito ventilado, viagem agradável, tranqüila. Eu gostava sobretudo quando se sentava a meu lado a garota de traseiro bem fornido e coxas de misse, e que roçava na gente acompanhando o sacolejar do veiculo para a esquerda e para a direita e vice-versa, nos trilhos zoadentos.

Retomei a Teresina no principio de 1947. A cidade fundada por José Antônio Saraiva tinha uns vinte carros de aluguel e um tanto igual de carros particulares. Não me lembro de ônibus nesse tempo.

Se a memória não me falha, foi em 1963 ou 1964 que, em Teresina, fiz entrevista com o senador Sigefredo Pacheco, que havia retornado de viagem a Rússia, numa visita de parlamentares brasileiros. Dirigi ao saudoso médico e amigo várias perguntas sobre o povo russo, o comunismo, a arte, a literatura dessa gente, quase desconhecida dos piauienses na época. O entrevistado ofereceu esclarecimentos curiosos e ilustrativos. Publiquei-os na imprensa.

Não poderia deixar de fazer uma indagação sobre a capital soviética, assim me respondendo o senador: "Cidade muito grande e populosa, mas atrasada. Não possui certo conforto da vida moderna, como o automóvel. São poucos esse veículos que trafegam em moscou, menos do que em Teresina".

Sigefredo informava uma verdade. Até na capital russa o tráfego de automóveis se mostra reduzido, o que não significa atraso, mas proteção do governo à economia do povo.

No Brasil o ideal de todos reside em possuir automóvel, ricos e pobres. Os pobres, porém, sacrificam as pequenas rendas auferidas para a aquisição de carro próprio e cuja manutenção, com gasolina, peças repostas, oficinas revisoras, só angustiam o raquítico orçamento doméstico. A política soviética se vira para proteger a bolsa popular, proibindo-se que a massa de gente trabalhadora se sacrifique na compra do que lhe acarretará despesas acima do seu poder aquisitivo. Que faz o governo russo? Oferece ao povo o sistema de metrô mais luxuoso do mundo e no transporte subterrâneo todos alcançam, em tempo mínimo, o local de trabalho e de residência.

No Brasil, pessoas que mal comem, mal habitam se envaidecem pilotando o que compraram por altos preços, que adicionam juros criminosos.

A ministra Zélia Cardoso de Melo denunciou pela televisão que uma empresa vendedora de carros, a Autolatina, está cobrando preços acima do normal pelos veículos que vende. A empresa contesta a ministra. Não sei de que lado está a razão. Penso, porém, que a ministra deveria punir os preços extorsivos que se cobram pelos produtos extorsivos que se cobram pelos produtos necessários ao povo, diariamente sobem de preço, e o aumento se faz com a autorização do próprio governo, ou da ministra, e se relaciona com o pão, com o leite, com o transporte coletivo, com a energia elétrica.

Carro particular significa luxo, ao menos para o povo de barriga roncada.


A. Tito Filho, 28/12/1990, Jornal O Dia

FUNÇÃO DAS ACADEMIAS

As instituições literárias devem cuidar de objetivos diversos. Não cabe que os seus membros se restrinjam a compor poemas e escrever livros de ficção. As verdadeiras entidades de cultura fiam mais fino. Não esquecem a coletividade e procuram ajudá-la nos seus anseios, educando-a no conhecimento dos aflitivos problemas humanos. Outras vezes convocam escritores, para o conhecimento de novos processos de criação artística. Bom ainda que se consiga a presença de vultos ilustres para que deponham sobre o passado e assim esclareçam dúvidas e equívocos.

A Academia Piauiense de Letras tem cumprido deveres e obrigações neste particular. Figuras do mundo cultural têm vindo ao Piauí por convite do sodalício, que consegue junto a administração pública e as pessoas dos convidados, que jamais cobraram um centavo pelos valiosos serviços que prestam a gente e sobretudo aos moços piauienses. Citemos os mais recentes, os que nos proporcionaram lições oportunas nestes últimos cinco anos, vindos por vontade de ajudar a nossa Casa de Lucídio Freitas: Esdras do Nascimento, Jaime Bernardes, diretor-proprietário da famosa editora Nórdica; Assis Brasil, Afrânio Coutinho, nomes que deixaram proveitosas lições aos estudantes da Universidade Federal do Piauí. Outro exemplo de dedicação pode dizer-se do professor Correia Lima, cientista de fama internacional, especialista neste mal do século, a AIDS, com duas palestras educativas sobre o assunto, uma aos jovens, no amplo auditório da Escola Técnica Federal, outra aos acadêmicos, jornalistas e convidados especiais na sede da Academia. O nosso companheiro Vilmar Soares conseguiu a visita.

Deu-nos a honra da presença o presidente da Academia Brasileira de Letras, esse admirável Austregésilo de Athayde, que convidou conosco cinco dias, simples, amável, na velhice verde dos 90 anos, e que prestigiou a Academia e as nossas entidades de cultura pelas lições oferecidas na palavra entusiasmada e contagiante.

Chegaria a vez do mito, cuja vinda conseguimos por intermédio da professora Anita Leocádia, amiga de rara grandeza espiritual. Sim, veio ao Piauí o capitão Luís Carlos Prestes. Visitou os sítios históricos em que ele acampou, com os seus barbudos: Oeiras, homenageado pelo Instituto Histórico e pelo líder B. Sá; Floriano, em calorosa recepção, Monsenhor Gil, a antiga Vila de Natal, de onde o chefão dirigiu o cerco de Teresina - e finalmente esta capital do Piauí, cercado de admiração e respeito, recebido no palácio governamental, na sede do Poder Judiciário, na Assembléia Legislativa, a Prefeitura, na Câmara dos Vereadores e na Academia. Por toda parte Prestes restabeleceu a verdade histórica sobre a marcha formidável pelo interior do Brasil.

Neste outubro de 1990 o nosso conterrâneo Vilmar Soares prestou outro valioso serviço ao Piauí com a vinda do grande professor Affonso Berardinelli Tarantino à Teresina, por convite da Academia. Trata-se de médico de nomeada, membro da Academia Nacional de Medicina, mestre da Universidade Gama Filho, na Universidade do Rio de Janeiro e na Escola Carlos Chagas. Os acadêmicos confiaram-no às nossas instituições médicas a coordenação de um jovem doutor, sério e dedicado, Antônio de Deus. Tivemos todo o apoio do governo piauiense. Foram 15 horas de aulas sobre aspectos da Pneumologia. Palestras úteis e oportunidades a respeito de pneumonia, doenças pulmonares crônicas, derrame pleural, tuberculose, tabagismo, entre outras partes do extenso programa.

*   *   *

Paulista de nascimento e carioca de afeição, Tarantino me impressionou pelas maneiras simples de palestração. Não parece o professor de tantas láureas. Nem o cientista de fama merecida. Gosta da humanidade, de servir os outros. Apaixonou-se por Teresina, talvez pelos cenários miseráveis do processo de favelização da capital piauiense. Dá pouco valor aos bens materiais. Virtuoso, cultiva princípios maravilhosos que dignificam o homem. Escreve com a compostura do zelo da língua, no estilo vivo, original, gracioso, como escreveram e escrevem os grandes médicos, em falhas, cativo da frase correta, mas sem os pruridos antipáticos das gramatiquices.

Tarantino deu aula de beleza espiritual na Academia Piauiense de Letras. Senti que ele guarda imenso amor a memória da genitora, de cujo túmulo, em São José dos Campos, ele cuida, com os instrumentos da jardinagem, no comparecimento mensal na cidade, na distância de 300 quilômetros.

Aos acadêmicos, na despedida, acentuou que teve tratamento igual ao do Piauí em dois passeios quando visitou Portugal e quando tinha o carinho e o afeto da mãe querida.


A. Tito Filho, 30/10/1990, Jornal O Dia

CIVILIZAÇÃO

O homem criou a sua própria destruição - máquina, geradora do maior processo revolucionário de todos os tempos, a civilização industrial, e das consequencias dela advindas: o combustível, que provoca a existência das nações pobres e ricas; a conquista de mercados consumidores para os produtos fabricados em larga escala; e o imperialismo dominador, responsável pelas angústias de tantos povos exploradores. O poder econômico, pelos canais de intensa propaganda e publicidade subliminar, institui a cultura enlatada, subvertendo a vida espiritual e criando a fantasiosa existência do conforto a qualquer preço e do desprezo a comezinhas normas de convivência moral. Em nome do progresso, o bonito Rio de Janeiro transformou-se numa selva de cimento armado, a fim de que os fabricantes de arranha-céus e elevadores obtivessem lucros fabulosos. A coca-cola, líquido que produz cansaço, torna-se símbolo das alegrias da juventude. Para vender mais, desnudaram-se nádegas, seios e até a parte inferior mediana da região hipogástrica que forma a eminência triangular feminina. Velhotas menopáusicas passeiam as muxibas pelas ruas metidas em calças anatômicas. Homens pelados na televisão exibem as mãos nos bolsos. Nada mais nada menos do que a glorificação do NU. Último modelo de veículos, viagem de turismo, uísque para as coronárias, jantares americanos, o arsenal químico dos tranqüilizantes para os sofridos nervos depois dos bacanais que varam as madrugadas - eis alguns quadros do selvagem capitalismo nacional, sustentador do luxo nababesco de uma elite que não cede, que se recusa às reformas urgentes exigidas de uma minoria irresponsável que pouco se incomoda que milhões cheguem ao desespero, pela fome, pela habitação desumana, pela família sem os mínimos bens da vida, pela doença, pela miséria generalizada. A verdade está em que poucos gastam milhões no fausto, no luxo, no comodismo, explorando quase todos os brasileiros da paupérrima classe média e da aviltada classe proletária. Pequenos comerciantes, professores, jornalistas do batente, e milhões que chegam a cinco ou dez salários mínimos sacrificam os ganhos mensais nas prestações para aquisição da bateria de eletrodomésticos anunciados pela propaganda dentro do lar humilde; ou na compra do fusca, o amor das mal-amadas, ou no pagamento da viagem feita a Foz do Iguaçú ou a Buenos Aires; sem falar dos carnês do Banco Nacional de Habitação e da sua centena de sucursais pelos Estados antigamente federados, hoje membros da República Unitária Brasileira - e esses dinheiros mensais do ganancioso financiador de casa própria confere direito a uma casinhola na grande concentração dos conjuntos habitacionais. A classe média, sem dinheiro, busca status, a vaidade de obter alguns instrumentos do progresso industrial à custa do sacrifício antecipado dos magros dinheiros que recebe. O proletariado, este marginaliza-se, no desempenho das elevadas funções lucrativas de traficantes, de bicheiros, de assaltantes - e assim com lucros fabulosos sustenta as famílias faveladas, onde habita, sob a guarda dos protegidos. Submetem-se a perigosa existência, mas se transformam em heróis no jornalismo e na concepção de gente humilde. Reformem-se as estruturas sociais do Brasil com urgência. Não é possível que pequena porção fútil, dissipando em festas ruidosas e episódios paradisíacos, numa gritante afronta aos que se entregam ao trabalho honesto e digno, [tanto] público como privado. Está na hora de ceder, tanto os latifundiários que exploram a terra e o homem, como os capitães de indústria e os tubarões da economia que sugam os restos de resistência do trabalhador nacional, na indústria como no comércio. Os homens do dinheiro continuam na nefasta teimosia de levar o país ao desespero.


A. Tito Filho, 18/08/1990, Jornal O Dia

SUSPENSE

Suspense pertence ao vocabulário inglês. No meu modesto livro ANGLO-NORTE-AMERICANISMOS NO PORTUGUÊS DO BRASIL, que destacamos autores nacionais elogiaram, sem que merecesse registro ao menos de uma linha dos críticos e comentaristas piauienses, salvo os colegas da Academia, nesse livro defino SUSPENSE como momento de forte tensão no enredo de filme, peça teatral ou obra de ficção, certa ansiedade resultante de incerteza, mistério ou indecisão.

Faz pouco tempo a Academia Piauiense de Letras editou e entregou ao público "Um Drama de Consciência", do acadêmico e médico Salomão Chaib. Ofereci-o a vários jornalistas da terra, mas nenhum registro se fez dessa pequena (50 páginas) obra-prima.

Quando li os originais do trabalho de Salomão, lembrei-me de Eça de Queiroz, em "O Mandarim": "No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dela nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, postas a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver; e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?".

Tocaria você a campainha?

Assim no livro de Salomão. Médico famoso vai operar coronel acusado de [ser] torturador. As vítimas ameaçam por telefone o cirurgião. Ou mata o paciente ou tem a filha raptada. Que fazer? A vida do violento militar se encontra nas suas mãos. Salva-lhe a vida ou a da filha? O livro deve ser lido pois nele se encontra a resposta.

Faz anos tenho muita admiração a Orlando Parahym, médico pernambucano de merecida projeção cientifica e literária. Possui, inclusive, estudo biográfico e crítico sobre o piauiense Otávio de Freitas, fundador da Escola de Medicina do Recife. Mandei o livro de Salomão a Parahym, que me escreveu pela seguinte forma: "Caro mestre e ilustre amigo Tito Filho. Agradeço-lhe a oferta do livro "Um Drama de Consciência", de autoria de Salomão A. Chaib. Ao que me parece, o escritor é profissional da medicina. Além disso, um escritor excelente. Estilo simples, claro e comunicativo. No que se refere à parte médica, aí tudo é perfeitamente descrito, revelando no escrito a personalidade de um cirurgião de alta categoria e longas experiências no ofício. Todas as minúcias acham-se referidas e discutidas a luz dos mais modernos conceitos da cirurgia. Se, no que tange à descrição empolgante do ato cirúrgico tudo se eleva às raias do inexcedível, cabe ressaltar o primoroso literato cuja valorosa personalidade se consagra modelar em todas as páginas em que descreve a intensidade psicológica do terrível drama de consciência vivido pelo Dr. Coutinho. Digo-lhe tais coisas, meu caro Tito Filho, depois de ter lido e relido essas páginas tão empolgantes de um livro capaz de prender nossa inteligência mercê do seu conteúdo admirável e forte, comovente e belo na sua opulência literária e humanística".

Palavras espontâneas de uma autêntica glória da Medicina e das letras de Pernambuco. Outras referências elogiosas me chagaram de várias cidades brasileiras.

E no Piauí? Nada. Registro algum se fez. Falta de interesse pela boa leitura? Desprezo ao que é nosso? Uma tristeza esta taba piauiense habitada de inúmeros sábios da Grécia.


A. Tito Filho, 31/07/1990, Jornal O Dia

domingo, 12 de fevereiro de 2012

DIVERSÃO E CULTURA

Assim como Carlitos deu ao cinema dimensões novas, e soube acompanhar a marcha do tempo, compondo o filme na conformidade da evolução do gosto da crítica e do público, para harmonizá-los - Disney nunca desancou na busca de idéias e fórmulas - e foi ele que produziu a película de cenário desenhado, com intérpretes desenhados e figuras vivas de atores e atrizes. Assombroso o método. Disney, apenas Disney, chegaria a tal ponto: Mickey a dialogar com Frank Sinatra.

Passou o admirável artista a produção de filmes naturais, abdicando do desenho - e dessa atividade lucrou o cinema produções de grande aceitação. Utilizava-se de episódios quase desconhecidos da história americana e de outros povos, ou inventava narrativas despertadoras do mais vivo interesse, confiava os papéis a artistas obscuros, para lançá-los, e de cada um obrava o milagre de promover a glória e a fortuna. Disney mágico - o Disney dos filmes encantadores, nos quais a alma humana se mostrava plena de bondade. Os seus bandidos eram homens maus, como todos os bandidos, mas os seus heróis não praticavam ações fantásticas. Eram reais nos gestos, humanos nas atitudes, e podiam, desse jeito, ser imitado das crianças. Cinema educativo, realmente voltado para a educação do menino - o menino que foi a preocupação do artista imortal. Jamais sofisticou as suas comédias, todas plenas de alegria, de entretenimento, de candura, de afeto. Amava a criança e, amando-a sinceramente, dava-lhe, no filme, o ambiente do lar tranqüilo, em que convivem no seio da família: bem humorados, comunicativos, risonhos, compreensivos nos defeitos e confortados das qualidades de cada um, Disney talvez tenha suplantado Carlitos no ideal educativo. Sim, suplantou-o. Carlitos é pessimista: Disney foi otimista - doutor em otimismo.

Milionário dezenas de vezes, o feiticeiro dos estúdios de Burbank, em Los Angeles, Califórnia, não sabia guardar dinheiro. E veio a Disneylândia, o seu maior cometimento, a realização que fez de Disney uma impressionante personalidade do século XX.

A Disneylândia, visitada por cinco milhões de pessoas, anualmente, foi construída com cem milhões de dólares, num terreno árido em Anahelm, Los Angeles, Estado americano da Califórnia. Disney concebeu-a para divertir e educar. Uma cidade encantada distribuída em quatro distritos:

1) A terra dos Pioneiros (Frontierland), em que os visitantes apreciam a gloriosa luta dos primeiros povoadores da América. As lutas dos desbravadores com os índios. A paisagem social dos tempos iniciais dos Estados Unidos. Os uso. Os costumes. Os transportes. O "saloon", de prostitutas bem cuidadas, uísque ordinário, pistoleiros, coragem e covardia.

2) A Terra da Aventura (Adventureland), em que se mostram os mais interessantes aspectos da vida de muitas comunidades da terra, os seus animais com sabor de lenda, os seus usos, os seus trajes, as suas árvores, os seus encantamentos.

3) A Terra da Fantasia (Fantasialand), em que se reproduzem notáveis contos de fadas, e ali se vêem, em miniatura, a cabana dos Sete Anões, o borralho e a Gata Borralheira, e tantos outros cenários e personagens que, em todos os tempos, constituíram o patrimônio de contentamento da criançada.

4) A Terra do Futuro (Tomorrowland), é uma visão da vida além dos tempos atuais, a era dos foguetes espaciais e das viagens interplanetárias.

Tudo isto funciona, diariamente, com milhares de interpretes, com reconstituição de casas e veículos, com reprodução de cenários, e tudo funciona como a mais prodigiosa concepção da genialidade do homem.

Acredito no que educa, ou diverte educando. Somente.


A. Tito Filho, 27/09/1990, Jornal O Dia