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sábado, 6 de agosto de 2011

CRÔNICA DA CIDADE AMADA

Dia 5 de setembro de 1850. Era de noite, quando José Antônio Saraiva chegou a Oeiras, a velha Mocha – capital do Piauí, o antigo São José do Piauí, nome com que o primeiro governante da capitania, José Pereira Caldas, homenageou o rei Dom José, de Portugal. A 7, consagrado a Independência do Brasil, o baiano assumiu a presidência da província.

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Na confluência dos rios Poti e Parnaíba, estava a Vila do Poti, que o presidente visitou ainda nesse recuado 1850. Saraiva não gostou do lugarejo, sujeito a períodos inundações, atacado de paludismo. Achou conveniente edificar a cidade noutro lugar, uma légua acima, entre os citados rios. Fixou-se no local Chapada do Corisco, antiga fazenda de criação de gado, de muitas trovoadas e faíscas elétricas na estação chuvosa. Ainda hoje trovões de papouco e raios atormentam a população teresinense. E foi aí na Chapada do Corisco que nasceu a Vila Nova do Poti.

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A 25 de dezembro de 1850, deu-se o lançamento da pedra fundamental da igreja de Nossa Senhora do Amparo. Mestre das obras: João Isidoro da Silva França. Antes de iniciar o edifício, construiu ele espaçosa casa de palha para se arranchar e por trás dela mais duas – uma como quartel dos soldados, e outra que servisse de abrigo dos escravos. No dia festivo celebrou-se missa na improvisada residência do construtor e houve comes e bebes, o primeiro banquete na futura capital do Piauí. Tocou-se muito foguete. Ao cabo de contas ai nascer uma cidade, sob os auspícios da bravura e da religião. As mulheres importantes tiraram dos baús os vestidos bonitões e se enfeitaram de jóias caras. Outro braço forte de Saraiva se chamou Manuel Domingues.

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A 20 de outubro de 1851, transferiu-se a Vila do Poti para Vila Nova do Poti, mas o povo, bem justiceiro, não deixou que a comunidade morresse, e passou a denominá-la de Poti Velho, ainda agora do mesmo jeito, pobre, casinhas modestas, povo sofrido e bom – o Poti Velho de permanente simpatia, cheiroso a peixe. Com os anos, tornar-se-ia subúrbio de Teresina.


A. Tito Filho, 22/01/1990, Jornal O Dia

TERESINA NA DISTÂNCIA

- Em 1904, o denodado Antonino Freire iniciava a construção do serviço de abastecimento d’água, concluído em 1906. Antes, as casas residenciais compravam o produto, servido em ancoretas que jumentos lerdos transportavam da beira dos rios. 

- De 1906 data a chegada do primeiro bispo do Piauí, dom Joaquim de Almeida. Muita vibração popular. Nesse ano se criava o Asilo dos Alienados. Doidos acorrentados. Quando dirigiu o estabelecimento, Clidenor Freitas aboliu o perverso uso das correntes. Esse antigo estabelecimento de fracos de juízo ostenta hoje o nome do criador: Hospital Psiquiátrico Areolino de Abreu.

- A venda de gelo começou em 1907, parece que de iniciativa de Joaquim Nelson de Carvalho.

- A Escola de Aprendizes Artísticos, depois Escola Industrial de Teresina surgiu em 1910, Governo Nilo Peçanha. Agora se chama Escola Técnica Federal.

- A Imprensa Oficial, núcleo da atual Companhia Editora do Piauí, data de 1911.

- A primeira Escola Normal nasceu no século passado. Viveu pouco. A segunda se criou em 1910. A terceira, oficial, em 1915, que se transformou no Instituto de Educação Antonino Freire.

- Instalou-se em 1916 o jogo do bicho. Loteria dos pobres.

- Dois acontecimentos culturais em 1917 e 1918, respectivamente: a Academia Piauiense de Letras e o Instituto Histórico Piauiense.

- O 25º Batalhão de Caçadores surgiu em 1918. E o Banco do Estado começou a operar em 1921.

- O Clube dos Diários, o Centro diversional por excelência, instituiu-se em 1922. Faz pena nos dias que correm. Sujo, imundo. Jogatina nos porões a noite toda, de mistura com mulheres da Vida fácil, uma consentida imoralidade pública.

- O Flamengo nasceu em 1931. Os primeiros aviões pousaram no ano de 1933. Inaugurou-se a ponte metálica sobre o Parnaíba em 1933. Nos anos seguintes se criavam o hospital Getúlio Vargas (1941), a Legião Brasileira de Assistência (1942), o Corpo de Bombeiros (1944), os primeiros sinais luminosos (1952), a primeira ponte de concreto sobre o Poti (1957), o 2º BEC (1958), a Centrais Elétricas do Piauí (1962), Águas e Esgotos do Piauí (1964) e em 1967 a Faculdade de Medicina.


A. Tito Filho, 26/01/1990, Jornal O Dia

THE END

Quando os filmes norte-americanos chegam ao final, na tela aparece: THE END, o fim, a história terminou. Este último carnaval revelou que a bonita trajetória desses folguedos, desde o velhíssimo entrudo (1), atingiu o capítulo final, pois nas atuais circunstâncias a gente pode ver e observar cenários diversos, menos os que se harmonizem com aqueles dos festejos momescos que se verificavam até os anos sessenta, de músicas inesquecíveis, bailes maravilhosos, corso, batalhas de confete, de serpentina e de lança-perfume. O Rio de Janeiro oferecias as escolas de samba, na melhor criatividade do carioca, e os foliões de rua, originais e plenos de bom humor. Tudo espontâneo, originário do povo, já agora, neste martirizante fim de século, anulado e desprezado. 

Que se observa nestes novos tempos? O carnaval comercializado, para atrair turistas endinheirados, que gastam e esbanjem, embora sufoquem a alma popular. As escolas de samba, no Rio, gastam milhões, endinheirando mais ainda os empresários do luxo desmedido, num país de famintos e miseráveis. Carnaval oficial em que se gastam milhões dos cofres da nação. E os bailes? Terça-feira, a partir das 23 horas, duas televisões repetiam as imagens das danças em dois clubes: o Monte Líbano e o Scala, ambos do Rio. Que se viu? O desfile de mulheres nuas, em requebros bestialógicos, pelo meio do salão, justamente porque lhes faltam homem para o recato das alcovas. Na outra festança, a do Scala, uma concentração formidável de gueis, ou veados de ricas fantasias. Mau gosto para todos os cantos, as bichas peitudas, bundudas, à custa de hormônios, mostrando os ditos e as ditas, em rebolados e trejeitos, sempre entrevistadas por artista célebre, a Monique Evans, que deles debochava a mais poder. Manhãzinha de 4ª feira, o espetáculo de Sodoma e Gomorra ainda estava nas telas das televisões que pertencem ao governo. O Brasil está podre.

Em Teresina? Uns quatro bloquinhos na Frei Serafim, inexpressivos, sem graça. Clubes desanimados. 

No Recife, o frevo e muita cachaça. Na Bahia, os trios elétricos, custeados pelos dinheiros públicos. 

Querem mais? Basta que se oficialize a cultura. 


A. Tito Filho, 02/03/1990, Jornal O Dia

XODÓ

Teresa Cristina obteve monumento na área, pois o nome de Teresina é homenagem à mulher de Pedro II.

Não se pode visitar a cidade sem conhecer o Zoobotânico, a encantadora natureza na comunhão de animais e plantas, e o Campus Universitário, situado depois do elegante bairro do Jóquei Clube, na aprazível Ininga – a Universidade que vale o futuro.

Sem mar, Teresina tem praias fluviais, feitas pela natureza dadivosa, nos dois rios que a cercam – o Poti e o Parnaíba. São as famosas praias de verão, de julho a outubro, mais ou menos. Pelo meio dos dois rios, aparecem ilhas de areia, as coroas, ou croas, nas quais homens e mulheres se banham de água doce e tomam sol, sempre aos domingos. Copacabanazinhas da cidade. Maiôs e biquínis animam a paisagem. Os olhos não cansam de ver, mal intencionados.

Não há quem se perca no caminho da zona alegre da rua Paissandu, perto do Parnaíba. Beira de rio fabrica prostitutas. A rua Paissandu é mais conhecida em Teresina do que pai-de-santo na Bahia. De noite, botequins e freges vendem cachaça e comida, e nos cabarés as garotas vivem o drama humano e social de ingressar na profissão. Música, canto, luxúria. Boêmios, cáftens, cafetinas, gigolôs, veados se misturam e se baralham. Muitos pagam as meninas dos instantes de amor com a ceia madrugadina.

Passear os avenidões da cidade – avenida Poti, Miguel Rosa, Maranhão, Gurguéia, João XXIII, Kennedy e tantas mais, emendadas umas nas outras como se fossem uma só – vale diversão e encantamento para os olhos e o espírito. De pouco em pouco a paisagem muda. Bairros humildes e bairros burgueses, embora a cidade seja sempre pobre e a gente viva da prestação e do “papagaio” bancário. Uma delícia, Teresina.

Ninguém se esqueça de um terreiro de umbanda. Nem das churrascarias, buates e restaurantes que tanto alegram as noites teresinenses. Iguarias típicas e frutas de muito prazer a barrigas exigentes – mel de rapadura, aipim cozido, batata-doce, beiju, buriti, bacurí, cajá, caju, canjica, carne de sol, chouriço, qualhada, cozidão, cuzcuz, imbu, mão-de-vaca, paçoca, sarapatel – tudo isso dá gosto viver por cá.

H. Dobal voltou de Londres e contou que é facílimo telefonar de lá para Teresina. E arrematou: não há dúvida de que a Inglaterra está progredindo.
Ao cabo de contas, Juca Chaves costuma dizer que conhece as maiores cidades do mundo. Andou por Tóquio, Paris, Londres, Nova Iorque, Pequim, Buenos Aires e Teresina.

Teresina bole com a gente. Meu amor, meu bem-querer, minha louvação.


A. Tito Filho, 01/02/1990, Jornal O Dia

LINGUAGEM

Uma feita escrevi a respeito da linguagem de Jorge Amado, que alguns consideram atentatória ao pudor, pornográfica, ofensiva da educação puritana de donzelas puras e rapazolas ainda de buço ralo. Lembrei o presidente Truman, dos Estados Unidos, antigo vendedor de gravatas no Missouri. Um jornalista criticou-lhe a filha Margaret, admitindo que a moça, que se julgava cantora, cantava muito mal. Truman defendeu a filha, pela televisão, e xingou o jornalista de SON OF A BITCH. Sobre Truman choveram protestos de toda parte, das ligas americanas de moralidade, de sindicatos de educadores, de gente cultivadora de falsa pudicícia.

No meu artigo, traduzi o SON OF A BITCH como FILHO DE QUALQUER COUSA. Fugi de dar o verdadeiro significado da expressão entre os norte-americanos.

Magalhães Júnior no seu “Dicionário de Coloquialismos Anglo-Americanos” registra SON OF A BITCH, isto é, FILHO DE UMA CADELA, e atesta que tal expressão é o pior insulto da língua inglesa.

Disse eu que não elogiava o impropério de Truman. A alta dignidade da função não o autorizava a ombrear-se com o calão do submundo social. Truman tinha o dever da expressão nobre. Mas, se Truman fosse o homem-da-rua, só os falsos correriam, envergonhados, da usança expressional de todos. Às vezes SON OF A BITCH, por razões semânticas, não xinga propriamente a mãe dos outros. Traduz antipatia, e muita vez até se torna modo de elogiar a grandeza alheia. Quando Lacerda convocava atenções das galerias da Câmara nos seus irônicos arroubos oratórios, ouvia-se, à boca pequena, de ouvintes catequizados de tanta inteligência:

- É um filho duma puta.

A linguagem humana é meio de entendimento da comunidade que se manifesta por processos vários. Há a linguagem literária, asseada, estruturada, e ao lado dela a linguagem natural, despoliciada, no contato com os amigos, nas diversões, a linguagem chã, plena de expressões triviais – veículo de entendimento geral, que todos compreendem, instrumento de conversação do doutor com a verdureira, do sábio com o limpador de sapatos.

Jorge Amado busca a vida para a concepção dos seus livros. A linguagem é vida. Jorge é repórter da vida. Passou o romantismo e com ele se foi a linguagem de polimento que José de Alencar punha na boca das cozinheiras e das babás.

Essa fotografia da fala da comunidade não pertence apenas a Jorge Amado. Pertence a José de Américo, a Lins do Rego, a outros.


A. Tito Filho, 03/01/1990, Jornal O Dia