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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

CONSIDERAÇÕES

José Eduardo Pereira se vem revelando dos mais lúcidos jornalistas piauienses dos nossos dias. Comentários lúcidos, oportunos, construtivos. Faz poucos dias examinou e bem a questão das casas de cultura do Piauí abandonadas. Noutro artigo convocou atenções para a criminosa publicidade de órgãos públicos, pelos jornais, rádios e televisões, noite e dia, para o endeusamento de pretensos candidatos a cargos eletivos. Faz gosto a leitura do jornalismo do colega da esquerda desta página.

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O futuro ministro da Justiça prometeu a pregadores do Evangelho, no rio, que pedirá aos responsáveis por televisões que evitem as cenas de gente NUA, sobremodo neste carnaval. Até os animais, na sua grande maioria, fazem sexo às escondidas, com exceção dos cachorros e respectivas cadelas, que são cínicas a partir do nome. Logo se exaltaram os partidários da liberdade assegurada pela Constituição Federal. Um crime não permitir que a Tieta faça a sugação, na cama, das últimas energias do pobre seminarista que, pela primeira vez, via a abundante flora da esperta Messalina. Neste país democracia vale o mesmo que liberdade total de colocar os possuídos à mostra, passar fome, ter residência e domicilio debaixo das pontes. Não há democracia onde as minorias ricas oprimem e sufocam as maiorias miseráveis.

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Formei-me em direito. No ano da graça de 1955, meu inesquecível mestre Edgar Nogueira, que se tornaria o magnífico ditador do Poder Judiciário do Piauí, me ofereceu várias vezes um lugar de juiz de direito no interior. Era bom, dizia. Promoções ligeiras, pois eram raros os bacharéis que aceitavam a formidável aventura. Estradas intransitáveis. De Teresina ao velho Marruás meio-dia de viagem no verão. Imagine-se no rumo do sul do Estado. Demais de tudo, a politicagem não permitiria a independência do magistrado. De vez em quando se matava um desses pupilos de Edgard Nogueira. Desisti. Hoje seria desembargador, com cem mil bagarotes mensais. E por que não nasci eu simples filha de desembargador. Uma velhota filha INUPTA (nome bonito e difícil) de desembargador falecido está mamando dos cofres piauienses cerca de cinqüenta mil cruzados novos cada mês, só para se coçar. Casando-se, perde a pensão. Amigando-se, nada acontece. Brasil bem Brasil.


A. Tito Filho, 04/02/1990, Jornal O Dia

OUTRA NARRATIVA

Escrevi outro dia sobre Josípio Lustosa, jornalista da velha guarda, falecido neste último fevereiro. Certo dia ele me procurou para tratar do caso de um amigo, o capitão ou major Elesbão Soares, que o governo havia expulsado da Polícia Militar do Piauí. Eu conhecia esse oficial de nome, mas passei a conhecê-lo na primeira conversa que mantivemos. Aceitei-lhe a questão, e buscaria reparação no Poder Judiciário. O ato de expulsão, com base em inquérito foi de autoria do governador. Com o correr dos meses, analisei bem a personalidade de Elesbão. Homem franco, inteligente, audaz. Sacrificava às vezes a carreira militar por virtude de rara teimosia da defesa das suas idéias. Sempre o via alegre, a modo de quem não guardava mágoa, disposto a enfrentar dificuldades e vicissitudes. Aprecieio-o nessas virtudes pouco cultivadas pelos fracos. Só os fortes as abrigam para a formação de uma personalidade respeitada.

Requeri mandado de segurança ao Tribunal de Justiça do Piauí. Perdi de 8 a 1 ou 7 a 2, não me recordo bem. Levei surra feia, que eu esperava, confiante em que ri melhor quem ri por último.

Uma triste e vergonhosa realidade o Tribunal do meu tempo de advocacia. Raríssimos desembargadores mantinham independência no exercício das funções. Quase todos atrelados ao Executivo, do qual, cada um, recebia benesses, empregos, prestígio, à custa de uma magistratura débil e praticamente desfalecida, na sua maior quantidade.

Como advogado, as minhas petições eram curtas e simples. Sempre desprezei os tolos latinismos, que concediam diplomas de sabedoria aos tolos, aos que apreciavam arrotos de erudição. Também não me servia de doutrinações e de jurisprudências. Achava que as leis ofereciam a lógica das cousas, sim, a lógica, pois meu inesquecível mestre de direito internacional no Rio, Haroldo Valadão, me havia ensinado, em aula, que o direito está onde estiver a lógica. Procurava escrever com clareza, linguagem clara, sem rebuscamentos ou expressões rococós, seguro do espírito das normas jurídicas.

Bati às portas do Supremo Tribunal Federal, a tábua de salvação contra o faccionismo do Tribunal do Piauí. Que aleguei? Não me era possível ingressar no mérito das razões governamentais, de acordo com os mandamentos do poder militarizado. Poderia alegar somente ofensa a princípios extrínsecos. Quais? A Constituição Federal lecionava que a expulsão de oficial das forças armadas das fileiras respectivas só se efetivaria por decisão judiciária de que não houvesse mais recurso. A mesma Carta Magna equiparava as polícias militares estaduais às forças armadas, logo só o judiciário tinha a prerrogativa de decretar a expulsão. Ganhei a questão por unanimidade do mais alto colegiado da justiça brasileira. Elesbão voltou à tropa com direito integral, inclusive às promoções.

Advogado humilde, modesto, sem propaganda, sem proteção, fui vitorioso nos casos mais importantes que se levaram a Justiça - assim como o dos professores exonerados por Chagas Rodrigues e outros do mesmo tope.


A. Tito Filho, 01/04/1990, Jornal O Dia

AINDA FOLCLORE

Fontes Ibiapina se realizou no difícil trabalho da obra de ficção, embora eu descreia da obra de ficção e acredite em que os escritores, nos contos e nos romances, reproduzam fatos e episódios da vida, inclusive aqueles de que foram intérpretes. E quando o escritor não copia a vida, produz a obra literária com adaptação de lendas e tradições populares. O "Fausto", de Goethe, promanou de um conto popular. O "Dom Juan" tem origem folclórica. Rabelais inspirou-se na lenda de gigantes gauleses para a criação de "Gargantua". Gustavo Barroso observa muito bem que os temas dos povos são, em grande parte, o berço das literaturas.

Produzindo esforçadamente, numa terra em que vale sacrifício o trabalho da inteligência apurada, Fontes Ibiapina enriqueceu, dia por dia, o patrimônio intelectual do Piauí. Os seus livros de contos, os seus romances fixam tipos, costumes, linguajar deste pedaço regional brasileiro. Vai às fontes das manifestações da alma popular, recolhe a sabedoria das comunidades, a sua expressão espiritual, os seus sofrimentos, e faz o livro de fixação, como se estivesse em pintar quadro dos mais sérios e dos mais graves e vivos. O homem de letras comunica-se por dois modos fundamentais: ou concebe a mensagem, reformando o pensamento existente, derribando preconceitos, sacudindo estruturas, ou faz da paisagem social cópia integral, a própria mensagem artística. Assim Fontes Ibiapina: a sua mensagem se encontra na poderosa inteligência de observação para fixar p meio e o homem que nele habita.

O livro de Ibiapina "Congresso de Duendes" reúne estórias de gente e principalmente estórias de bichos. De bichos, ou composição de fabulário, de que se extrai a indicação moralizadora, ou substrato do conto, que se cifra no vestígio sobre a figura humana do acontecido com a alimária em que ela se metamorfoseou. Há, na concepção de Ibiapina, verdadeiro conjunto de manifestações populares incorporadas, representativos das crendices mais fortes da coletividade piauiense.

Um grande folclorista adotou a tese de que os contos populares têm asas: eles voam através dos continentes, das raças e dos séculos. O folclore é um só.

O folclore poderia dizer-se a história moral do homem, como insinua Câmara Cascudo. Melhor é identificá-lo como a história natural das coletividades, da sua alimentação, dos seus tabus, das suas orações, dos seus ritos, da sua vida diária, para o reconhecimento da cultura como conjunto de normas sociais de que participamos.

Daí porque o trabalho do escritor, quando procura a fonte folclórica com sustento do livro, há de compreender as manifestações populares no campo em que elas se manifestam, para anotar-lhes as variantes e oferecer a fisionomia da realidade cultural. Não se pode reproduzir o folclore na sua universalidade, apenas. É necessário entendê-lo como a ciência do homem comum, a preocupação de Ibiapina, para projetá-lo no quadro da vida urbana e da vida rural, - como contadores de estórias de bichos, reproduzidas de gerações em gerações, como personagem de novelas de amor, de heroísmo, como personagem de facécias, de cenas de bravura para lavação da honra ofendida, sempre respeitoso com a mulher, - objeto das preocupações do macho numa terra de preconceitos, e mais: como personagem da violência de um mundo que o prepara para o ódio e para a vingança - o ódio e a vingança sugeridos e provocados pelo desequilíbrio dos processos da vida social.

Ibiapina utilizou-se dos bichos para ironizar os poderosos de desvirtudes políticas, e serve-se dos homens sem destino para que estes interpretem o drama das suas comunidades, nas quais os instintos não vivem, nem é possível que sobrevivam as outras estruturas da personalidade.


A. Tito Filho, 01/12/1990, Jornal O Dia