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sábado, 4 de fevereiro de 2012

SAGA

Era 1939. Compunha-se o Tribunal de Justiça do Piauí, ou Tribunal de Apelação, como era chamado, de seis desembargadores: Ernesto José Baptista, Simplício de Sousa Mendes, Cristino Castelo Branco, Esmaragdo de Freitas e Sousa, Adalberto Correia Lima e José de Arimathéa Tito, relacionados por ordem de antiguidade no colegiado, que se tinha como dos mais ilustres e corretos do país. Os seus julgadores gozavam de respeito e admiração. Sérios, estudiosos, políticos. Distribuíram justiça, a boa justiça que confere a cada um o que lhe pertence. Os acórdãos da alta corte mereciam transcrição em revistas judiciárias da maior evidência no país, como peças magistrais de estudos e de doutrina e de correta aplicação da lei.

Em setembro do ano referido aposentou-se o desembargador Cristino Castelo Branco. Abriu-se a respectiva vaga no Tribunal, que deveria preencher-se por merecimento. Pretendia o lugar de juiz de Direito de Teresina - Eurípedes de Castro Melo, irmão do interventor federal no Piauí, Leônidas de Castro Melo - e este alimentava grande desejo de nomeá-lo para a Corte de Justiça. Chegou a endereçar correspondência aos desembargadores Esmaragdo de Freitas e José de Arimathéa Tito pedindo-lhes voto para o candidato fraterno. A maioria do Tribunal, porém, na organização da lista tríplice para promoção não indicou o nome de Eurípedes.

O Chefe do Poder Executivo descumpriu a indicação do Tribunal. Baixou decreto a 27 de novembro de 1939 aposentando os desembargadores Esmaragdo de Freitas e Sousa, José de Arimathéa Tito e Simplício de Sousa Mendes. O ato de violência estarreceu a consciência jurídica nacional. As vítimas da perversa ditadura instalada por Getúlio Vargas lutaram pelos meios legítimos, mas nunca conseguiram voltar aos cargos, por razões de amizades dos algozes com os donos do poder.

Tornou-se o Tribunal de Justiça dependência do Palácio de Karnak, sede da interventoria federal. O presidente Adalberto Correia Lima, que apoiou as aposentadorias, elegeu-se para o mesmo cargo até quando quis. Aposentou-se em 1954. Chefiou o Poder Judiciário durante quinze anos, como proprietário do Tribunal. Raros os desembargadores e juízes que desempenhavam com independência as funções da magistratura.

Ocorreu a queda de Getúlio Vargas e conseqüentemente a destituição de Leônidas Melo da interventoria no Piauí. No Rio, os dois principais candidatos à presidência da República, Eduardo Gomes e Eurico Gaspar Dutra, consentiram em que a Chefia do Executivo federal se entregasse ao presidente do Supremo Tribunal Federal e os interventores passassem ao desempenho dos presidentes dos Tribunais de Justiça nos Estados, mas no Piauí o presidente do Judiciário foi afastado do critério por virtude do seu evidente partidarismo. Entregou-se o poder a um coronel reformado.

Conquistada em 1945 a liberdade de imprensa, após a escuridade do perverso sistema ditatorial de Getúlio Vargas, o país preparou-se e iniciou as campanhas eleitorais com intenso entusiasmo. No Piauí o Tribunal de Justiça, por motivo de atitudes da maioria dos seus desembargadores, era severamente criticado nos julgamentos orientados pelos interesses da politicagem. Os membros do colegiado se submetiam à debocharia da opinião pública e recebiam apelidos grotescos com que o povo procurava caracterizar-lhes a personalidade.

Desmoralizou-se o Judiciário, pela prática nociva da defesa do partido oficial, decidindo por paixões políticas e por parentescos familiares.

Neste clima de decomposição de um dos poderes responsáveis pela segurança das instituições, o médico José da Rocha Furtado assumiu o cargo de governador do Piauí, eleito livremente no dia 19 de janeiro de 1947 e empossado a 28 de abril do mesmo ano. Candidato da União Democrática conquistou escassa maioria na Assembléia Legislativa.

O novo governante piauiense, cidadãos de honestidade inatacável, leal, médico de raro conceito, cirurgião projetado, idealista, desafeito dos métodos da política malsã, enfrentou, no quadriênio, dificuldades sem fronteiras criadas pelo Tribunal de Justiça de maioria facciosa, pela maioria dos deputados estaduais e pela presidência da República, exercida por Eurico Dutra e que, na alta magistratura da nação, adotava para o governo piauiense os gestos facciosos exigidos por um genro, que arrecadou uma cadeira de deputado federal, como candidato do Partido Social Democrático do Piauí, para que se prestigiassem os adversários de Rocha Furtado na aplicação de remédios ilegítimos que destruíssem do poder o governador do Estado.

A Academia Piauiense de Letras está editando as memórias de Rocha Furtado. A saga de um período que vai de abril de 1947 a janeiro de 1951, numa narrativa rica de incidentes. As suas páginas devem incorporar-se à história do Piauí. Testemunham fatos e episódios na palavra de uma das figuras mais destacadas do nosso passado recente.


A. Tito Filho, 19/07/1990, Jornal O Dia

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