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terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

TRAGÉDIA

Estudante no Recife, meu pai se dedicava a estudos sobre a criança. Gostava do assunto. Foi pobre, sem dinheiros para diversões. Juiz de direito na sua terra natal, Barras, recebeu promoção por merecimento para Teresina. Era 1932. Cidade pequena, a capital do Piauí possuía muitos locais de jogatina. Bilhar, dominó, o gostoso bozó para aposta de cervejas, e os cabarés já vicejavam por alguns lugares.

Meu pai pleiteou junto ao Tribunal que lhe fosse confiada a jurisdição dos menores. E assim foi feito. Sem veículos, com uns dois fiscais, havia segura fiscalização nos ambientes que se julgassem nocivos às crianças, que freqüentavam cinemas de tarde e ninguém os via nas ruas sem a companhia dos pais depois que a usina elétrica dava o sinal das nove da noite.

Quando fui estudar no Rio na década de 40, nunca vi garoto pelas ruas desacompanhados dos responsáveis e as diversões eram rigorosamente observadas quanto à idade de freqüência de crianças e adolescentes.

O Brasil nunca melhorou de vida. Vítima do colonialismo e já agora do imperialismo, quintal dos norte-americanos, país favelado, faminto, doente, em que nada funcione senão assaltos e crimes, dono de desumano sistema penitenciário, coletividade erotizada, desavergonhamento moral por toda parte, miséria, humilhação de magnatas estrangeiros examinando as contas do governo, ministros em adultério público - o governo agora, debaixo de riquíssima propaganda, festejou o dia da criança. O presidente da República possui ministros infantis. Uma patuscada. Decretou-se um estatuto da criança, como se o país nunca tivesse adotado códigos que protegessem os menores e que passaram a letra morta desde que a sociedade brasileira destruiu o lar da família. Mais uma vez se desviou a atenção nacional dos profundos malefícios que constituem a causa da desgraça do menor.

O espetáculo nacional semelha impiedade. Sociedade perversa voltada para o enriquecimento fácil, para os golpes milionários, para a futilidade, para o luxo, o gozo dos bens materiais, sem peias. As mulheres abandonaram o lar. Os meninos vivem nas ruas, espelho de uma sociedade maléfica. A rua reflete a patologia social e nela a angústia busca um consolo, um alívio, a rua é o refugio dos que não têm lar, têm apenas casa ou abrigo debaixo das pontes ou a promiscuidade dos conjuntos habitacionais. Pertence a rua aos sem-afeto.

O homem construiu uma civilização que o aniquilará. O mundo vale sexo, violência, dinheiro. O menor depende de uma liderança educacional apoiada no amor materno. Sem esse apoio, o menino busca na rua auto-afirmação. Não há crianças ruins, existem crianças mimadas ou escorraçadas, futuros desajustados. Uma sociedade injusta e desequilibrada produzirá apenas revoltados e criminosos.

Verifiquem-se os crimes que se praticam contra a criança no cinema, na televisão, observam-se os clubes mundanos, os botecos, os outros de jogatina. Cafetinas e gigolôs comerciam a carne de jovens mulheres, vendidas a concupiscência de bandidos engravatados.

Mas uma campanha hipócita pelo menor cuja saúde espiritual depende do saneamento moral da sociedade dita moderna - uma sociedade em que os ricos chafurdam no prazer dos vícios e dos gastos supérfluos e os milhões de párias brasileiros [que] vegetam no mais cruel dos destinos humanos: o de ao menos enterrar os filhos entanguidos e raquíticos que mulheres esqueléticas têm a desdita de parir para a morte.


A. Tito Filho, 25/10/1990, Jornal O Dia

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