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segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

LÍNGUA

Cada dia que passa mais se deteriora o ensino do português, - um ensino que padece, desde longos anos, de malferidos princípios didáticos, métodos antipedagógicos e de sisudez professoral - magister dixit empanturrado de sabedoria falsa e empáfia verdadeira. Regras, regrinhas e regrões entopem as páginas de dezenas de gramáticas, e cada uma delas oferece lições novas, a modo de originais e sábias.

Para entendimento de cousas simples, e nomes esquisitos, geralmente gregos, para batismo de fenômenos ao alcance de humildes inteligências. Os compêndios de ensinança se abastecem de denominações como catacrese, apócope, rizotônica, ênclise, zeugma, endoidecedoras de pobres estudantes do idioma. Na década de 60 criou-se a nova nomenclatura gramatical brasileira, nascida oficialmente de Ministério da Educação e assim imposta ao magistério, em todos os cantos do país. Agora a gramática seguiria a bitola convencional. Oficializava-se a reza ou recitativo dos compêndios no ensino da fonética, da morfologia, da sintaxe. Nesse figurino sujeito e predicado constituem os termos essenciais da oração. Deslembraram-se do significado de essencial: indispensável, necessário, e logo se decretou a existência da oração sem sujeito, aquela dos verbos expressivos de fenômenos da natureza, quando a esses verbos muito bem se atribuiria sujeito interno, como fazem os franceses no caso de chover, trovejar e outros. Antigamente, nas questões de análise sintática os mestres sadistas adotavam textos de Os Lusíadas, poema que Camões escreveu na ordem inversa e exigia-se que os garotos descobrissem o sujeito, como se fossem xerloques ingleses em busca do assassino misterioso.

Grande tormento ainda está na aprendizagem do aumentativo dos nomes comuns. Não se agasalha a voz popular rica de sabedoria e que, com muito critério, diz, no linguajar do dia-a-dia, cartona, copão, pratão, e só em determinados e raros casos o povo se utiliza do grau analítico, jamais o sintético das excentricidades gramaticais, fugido à língua viva, para consentir na bocarra, manzorra e outras semelhantes. Nos chamados adjetivos pátrios ou gentílicos os discípulos vêem alma à luz do meio-dia pois devem meter na cachola dezenas de esquisitices, criadas pela fértil imaginação de fabricantes de livros de ensinança de bem falar e escrever a língua portuguesa e de professores carrancudos, vaidosos e truculentos. A meninada endoida-se e os pais enlouquecem em busca do adjetivo referente a quem nasce em Três Corações, pátria de Pelé. Para Jerusalém, registrou-se o adjetivo hierosolimitano, repudiando-se o bom jerusalenense. Nada mais, nada menos do que o samba do crioulo doido. E o latim? Tempos atrás atormentava-se o estudante com a língua de Cícero, cientifica, declinada, literária, polida, que Cícero rezava na ocasião da sua eloqüente e imortal oratória, latim que o célebre romano nunca usou na conversação com os amigos e familiares. Jamais, por através da leitura, os professores ensinaram que o português representa hoje o latim evoluído, transformado, e que continuará a transformar-se porque a linguagem humana constitui fenômeno social, não apenas fonético ou morfológico. Assim, sem a utilização da leitura diária sob orientação do mestre, os discípulos não podem entender que celeste provém de céu e que ovelha vale o diminutivo de ovis depois das alterações fonéticas sofridas. A escola tem priorado nos seus métodos confusos de ensino, com mestres despreparados que mal redigem o próprio pensamento. A adolescência e a mocidade, ao cabo de contas, encontram-se abandonadas da sociedade, mas revoltam-se, rebelam-se contra o desprezo e passam a hostilizar os símbolos da vida social, e hostilizam a inteligência, a pátria, com a linguagem sem higiene, reflexo da aprendizagem que recebem, reveladora de que a vida não deve ser séria, mas uma pândega, de que o linguajar dos cidadãos brasileiros dá exemplo, na cátedra, no comício e sobretudo nas novelas da TV em que a gente fica com vergonha da língua estropiada pelos indivíduos maus da pátria amada.


A. Tito Filho, 22/08/1990, Jornal O Dia

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