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quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

BOLINA

Mário Barreto disse que cada palavra, na sua origem, exprimiu, como é natural, o conceito concreto a que foi destinada; mas deste conceito primitivo e único, a palavra, umas vezes por irradiação e outras por encadeamento, passou a significar diferentes objetos; mais ou menos relacionados com o primeiro; nestas novas acepções, umas vezes sucedeu que o uso conservou todas, e outras que esqueceu algumas, dando a outras a preferência, e assim vieram a produzir-se, por esta evolução, duas séries de fenômenos: a mudança de acepção de umas palavras, e o desuso ou morte de outras.

Assim se passou com aperitivo, que na linguagem médica de outrora era purgante (de aperire - abrir). Com o passar do tempo, aperitivo veio a significar abridor de paladar. A significação atual é profundamente conexa com a antiga.

Outras palavras tiveram determinado significado, modificado através do tempo, viveram por certo espaço com o novo significado, e morreram, isto é, saíram da linguagem usual do povo. Foi o que aconteceu, por exemplo, com bolina, substantivo feminino, termo registrado por Morais como o cabo prendedor da vela à amurada para que o navio tomasse o vento de banda. Vento à bolina (Morais) era o vento que o navio tomava de lado. Daí o verbo bolinar ou abolinar, ter vento de banda, e também bolineiro, o navio que dessa forma velejava. Abolinar é o verbo mais antigo e está nesta citação que Magne fez de João de Barros: "A caravela não era boa para abolinar".

De alguns anos para cá, nos dicionários aparece bolina também com o significado de contacto voluptuoso e disfarçado com a mulher, ordinariamente em cinemas, teatros, veículos, ao lado de bolinador (o que bolina), bolinagem (ato de bolinar), bolinar (verbo). Ao que praticava o ato se dava ainda o designativo de O BOLINA, mas no masculino, como se vê deste passo com que Nascentes explicou a mudança de significação da palavra: "Bolina, substantivo masculino, é o individuo que, em veículos, platéias, persegue com contatos desrespeitosos as damas. A expressão evidentemente vem da náutica. Andar a bolina é andar de esguelha ou inclinado para um lado. O vocábulo começou a ter voga a partir de 1892, quando se inauguraram os bondes elétricos. A população do Rio de Janeiro costumava, como divertimento, andar naqueles bondes para ter uma sensação nova. Daí os atropelos e o aparecimento dos bolinas. No Rio de Janeiro, o animal homem sempre procura, no bonde, no ônibus, no cinema, uma mulher bonita e ao lado dela se senta, movimentando braços e pernas, para contactos voluptuosos". Artur Azevedo escreveu referência e esses gestos do buscador de sensações: "E fez, com o cotovelo e com o joelho, trabalho digno de um bolina velho".

Bolina foi termo corrente na linguagem da mocidade de 20 anos atrás. Nos encontros de namorados, na obscuridade das salas de projeção, nas esquinas ou recantos mal iluminados, consistia a bolina em alguns amassamentos ou beliscos meio canhestros. Esses amassamentos ou beliscos ainda vigoram nos dias que correm, talvez até mais intensos e menos protegidos dos olhos do público - mas hoje eles são batizados com outros nomes. Bolina ficou nos dicionários. Desapareceu a palavra da linguagem usual, como tantas outras têm desaparecido.

Escritores e dicionaristas abonaram bolina como gesto voluptuoso:

- "Vai ser medonha a pagodeira, vai ser maior a bolinação" (Afonso de Carvalho - Como o Matuto Viu o Zepelin - Revista da Semana - nº 25 - ano 31).

- "E ainda o raio da velha me bolina" (Emílio De Meneses - Mortalhas - pág. 91).

- "Bolinava mulheres em público" (Laudelino Freire - Dicionário).    

- "A sua mania de bolinar desacreditou-o" (Francisco Fernandes - Dicionário de Verbos e Regimes).

Bolina veio do inglês bowline. Em francês é bouline, no alemão bulien, no holandês boelijne.


A. Tito Filho, 28/03/1990, Jornal O Dia

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